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Nicolas Shumway apresenta os desafios para a pesquisa em humanidades na era digital

por Mauro Bellesa - publicado 25/03/2022 17:30 - última modificação 05/04/2022 09:18

Nicolas Shumway, da Universidade Rice, EUA, foi o expositor no encontro "O Futuro das Humanidades na Era Digital", no dia 23 de março, organizado pelo Grupo de Estudos em Culturas e Humanidades Digitais.

Nicolas Shumway - 23/3/22

Perfil

Atualmente, Nicolas Shumway é professor emérito da Cátedra Frances Moody Newman do Departamento de Literaturas e Culturas Modernas e Clássicas da Universidade Rice, EUA.

Schumway obeteve o título de doutor em literatura hispânica pela Universidade da Califórnia em Los Angeles em 1976. Lecionou por 14 anos na Universidade Yale, onde se tornou professor titular. Em 1993, foi nomeado professor da disciplina Tomás Rivera Professor de Literatura Hispano-Americana da Universidade do Texas (UT) em Austin.

Entre 1995 e 2007, dirigiu o Instituto de Estudos Latino-Americanos Teresa Lozano Long da UT em Austin. De 2010 a 2017, foi reitor de humanidades da Universidade Rice University. Ocupou cargos de professor visitante na Universidade de São Paulo e em duas universidades argentinas: a Universidade de San Andrés e a Universidade Torcuato di Tella.

Seu livro de 1991, “The Invention of Argentina”, de 1991, obteve reconhecimento internacional, sendo selecionado pelo jornal The New York Times como um dos “livros notáveis do ano” recebendo a Menção Honrosa no Prêmio Bryce Wood  para Livros da Associação de Estudos Latino-Americanos. Em 1993, a Emecé Editores publicou uma tradução em espanhol na Argentina, revisada em 2002. A Editora da USP publicou uma tradução em português do mesmo livro em 2009.

Em 2012, a Emecé Editores lançou seu segundo livro sobre aquele país, “Historia Personal de una Pasión Argentina”, que inclui um ensaio autobiográfico contextualizando seu trabalho sobre o país bem como um estudo sobre como o termo “liberalismo” tem sido usado no discurso político argentino.

Ao mesmo tempo que as ferramentas digitais propiciam inúmeros recursos para a pesquisa em humanidades, incluindo até ferramentas de mapeamento genético, a enorme e crescente quantidade de dados disponibilizados leva a dificuldades adicionais, entre as quais a falta de arcabouço conceitual e categorias para interpretá-los.

Essa questão foi discutida pelo especialista em literatura e cultura latino-americana Nicolas Shumway, da Universidade Rice, EUA, em conferêrencia no encontro O Futuro das Humanidades na Era Digital, realizado pelo Grupo de Estudos em Culturas e Humanidades Computacionais no dia 23 de março.

Um dos pontos centrais da exposição de Shumway foi como as humanidades lidam com o passado e as dificuldades que elas encontram quanto têm de lidar com o futuro, além dos desafios que as pesquisas na áreas encontrarão no futuro. Ele lembrou frase do jogador de beisebol Yogi Barra: "É difícil fazer previsões, especialmente sobre o futuro". Também citou o escritor William Faulkner: “O passado nunca está morto, nem sequer é passado”.

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“O que falamos vem do passado, nossa linguagem é herança do passado, nossa boca está cheia de vozes do passado.”

No entanto, ele reconhece que por mais que questionemos a ideia do novo é inegável que o computador, a inteligência artificial e as redes sociais têm mudado as formas de fazer quase tudo (ouvir música, assistir a filmes, dar aulas, relacionar-se com os outros, formar comunidades).

Para ele, as humanidades talvez sejam um companheiro "um tanto esquisito" para o mundo digital: “O que as distingue é a preocupação com o passado”. Nelas, a noção de obsolescência não faz sentido e dizer que Hume, Kant ou Derrida suplantaram Platão e Aristóteles não faz sentido, é uma ideia absurda, disse Shumway, para quem é dever dos humanistas serem curadores da herança cultural existente nas bibliotecas e museus, “uma responsabilidade ainda mais assustadora na era digital, diante da enorme expansão dos arquivos”.

Ele vê com preocupação como os futuros estudantes lidarão com esse tsunami de dados, “uma vez que a internet descarta materiais na mesma velocidade que incorpora novas informações”.

As dificuldades ainda existentes para a produção de grandes bancos de dados eletrônicos - como na digitalização de acervos de bibliotecas e arquivos -, os custos de sua manutenção e os empecilhos ao acesso às informações digitalizadas são problemas que afetam e continuarão afetando as pesquisas em humanidades, afirmou.

Como exemplo, citou o projeto Google Books, voltado à digitalização de bibliotecas de universidades americanas. "Ele digitalizaram 500 mil livros da biblioteca da Universidade Rice. Terminado o trabalho, nos forneceram uma cópia dos arquivos. O sistema de reconhecimento de caracteres funcionou com índices de 90 a 95% de correção. Os erros tiveram que ser corrigidos à mão. Houve também dificuldades do software para lidar com outras línguas. No final, boa parte da coleção ficou fora de alcance do público devido a questões de direitos dos autores e editoras."

Além da preocupação com o passado e da noção de não obsolescência do conhecimento, Shumway ressaltou que há outras diferenças características das humanidades em relação a outras áreas do saber. Uma delas é a relação com a linguagem. "Acho que os humanistas devem ler melhor que os colegas das ciências naturais. Temos de reconhecer conotações e ambiguidades das línguas e que há diferenças culturais que levam a expressões que não são traduzíveis, como o caso do diminutivo em português e espanhol, de difícil tradução para o inglês." No entanto, há ainda uma dificuldade adicional, a interpretação do que se lê: "Ler é interpretar."

Para discutir a questão da interpretação, a possibilidade de conhecer algo e a noção de verdade, Shumway utilizou como referência o conto "A Procura de Averróis", de Jorge Luis Borges. Publicado no livro "O Aleph" (1941) do escritor argentino, o conto tem como personagem central o filósofo, médico e polímata de origem árabe conhecido como Averróis (1126-1198), um tradutor, comentador e divulgador do pensamento aristotélico, responsável pela revalorização da obra do filósofo grego na Europa Ocidental.

No conto, Averróis não consegue entender o significado das palavras 'tragédia" e "comédia", citadas várias vezes por Aristóteles na "Poética". Ele escuta crianças brincando, vai à varanda e vê três meninos. Um deles, está em pé no ombro de outro e fala como um almuadém chamando para a reza. O que estava embaixo, imóvel, fazia o papel de minarete e o terceiro, ajoelhado, da congregação de fiéis. Mas a brincadeira não durou muito, pois todos queriam ser o almuadém e discutiam por causa disso.

Averróis vê a cena, mas não lhe dá muita atenção. À noite, num jantar com vários amigos, um viajante conta como foi levado num lugar onde várias pessoas "estavam figurando uma história", de acordo com o texto de Borges. "Imaginemos que alguém mostre uma história, em vez de contá-la", explica o convidado viajante no jantar.

Shumway comentou que, no conto, Averróis viu os meninos brincando, mas não conseguiu identificar na brincadeira aspectos da comédia e da tragédia, "pois não tinha uma categoria para classificar o que via". Isso abre uma porta para um problema epistemológico, segundo o expositor: "Somos capazes de reconhecer coisas novas se não possuirmos termos para nomeá-las?"

Isso se aplica também ao grande arquivo que é a internet, segundo Shumway: "Não vemos certas coisas por que não temos categorias para classificá-las." Quase no final do conto, na alvorada do novo dia, já em casa, Averróis escreve que "Aristu (Aristóteles) denominava tragédia os panegíricos e comédias as sátiras e os anátemas".

Como o próprio Borges diz num parágrafo que é um posfácio ao conto, sua intenção foi escrever sobre a história de um fracasso. No mesmo parágrafo, diz o que percebeu à medida que escrevia: "Senti que a obra zombava de mim. Senti que Averróis, querendo imaginar o que é um drama sem ter suspeitado o que seja o teatro, não era mais absurdo do que eu, querendo imaginar Averróis (...)".

Nas últimas linhas, Borges acrescenta que ao escrever a última página sentiu que sua "narrativa era o símbolo do homem que eu fui enquanto a escrevia" e leva isso ao um espalhamento infinito entre o homem que escreve e a narrativa que era seu símbolo. Para Shumway, é preciso considerar um outro personagem, o leitor do conto, que interpreta Borges, que interpreta Averróis, que interpreta Aristóteles.

Ele destacou que o conto ressalta a dificuldade que o ser humano tem para interpretar as coisas, que leva inclusive ao questionamento sobre a noção de verdade. "Os historiadores trabalham com evidências tiradas do mundo real", mas a história "poderia ser o gênero mais efêmero das humanidades", em função de novas evidencias que as pesquisas podem apontar.

"Hoje estamos fazendo perguntas sobre raça, justiça social, sexualidade, perguntas que não eram feitas tempos atrás. Nos Estados Unidos, os responsáveis pelos arquivos eletrônicos estão fortalecendo o conteúdo sobre a escravidão e a narrativa do Sul sobre a Guerra da Secessão, que apresenta a região como contrária ao centralismo federal e os invasores do Norte como cruéis, que não respeitavam a cultura do Sul, torna-se falsa diante dos registros sobre o tráfico e a negociação de escravos, a crueldade a que eram submetidos, as famílias divididas."

Boa parte dessas pesquisas agora é possível graças às humanidades digitais, segundo Shumway. Outros recursos além de bancos de dado eletrônicos cooperam para a revisão de narrativas e interpretações, como é caso do mapeamento genético. Como exemplo disso, citou as pesquisas de DNA que confirmaram que os cinco filhos de Sally Hamings, escrava durante 20 anos de Thomas Jefferson, principal autor da Declaração de Independências dos Estados Unidos.

Debate

Teixeira Coelho, organizador do evento e coordenador do Grupo de Estudos Culturas e Humanidades Computacionais, disse que nas humanidades não há a superação do que veio antes ("Clarice Lispector não superou Camões, William Faulkner não ultrapassou ninguém"), mas nas chamadas ciências duras, os cientistas dizem que certas coisas são superadas por novas formulações. "Alguns físicos reconhecidos dizem que todas as questões que a filosofia gostaria de responder serão respondidas pela física e, a longo prazo, quem vai dar a palavra final será a física, e as humanidades não terão nada a dizer."

"Alguns cientistas totalmente materialistas dizem que as humanidades ficarão obsoletas, mas acho isso pouco provável", respondeu Shumway. Nas ciências é bastante plausível falar de progresso, obsolescência de ideias, afirmou. "Nas humanidades isso não ocorre, sempre falamos no tempo presente: Platão diz, Cervantes diz, como se fossem nossos colegas. Estamos sempre preocupados com a verdade, mas isso é uma coisa que sempre dá início a outras conversas. As humanidades são a continuação de uma conversa velha que nunca deve terminar."

Outra questão levanta por Coelho foi sobre a interpretação. "Karl Marx teve a pretensão de fazer um rompimento entre a interpretação que ele chamava de má interpretação e a ciência e vimos o desastre que deu; e no século 20, os neomarxistas e os psicanalistas tentaram fazer a mesma coisa: como passar da interpretação para algo que fosse além dela", comentou.

Diante desses precedentes, Coelho quis saber de Shumway como ele via ao livro "Contra a Interpretação" (1966) da ensaísta e crítica de arte americana Susan Sontag. "Muito da ciência contemporânea é contra a interpretação, diz que os fatos estão dados, mas quando vamos ver os fatos percebemos que há um resíduo de interpretação. Sempre haverá um resto de interpretação, seja nas ciências ou nas humanidades?"

"Um dos problemas que tenho com muitos marxistas é que eles começam com as conclusões, sabem de antemão quais serão as conclusões", respondeu Shumway. Disse ver isso em pós-modernistas, pós-estruturalistas e pós-derridarianos [referente ao pensamento do filósofo francês Jacques Derrida]. Quanto ao livro de Sontag, considera que nele o problema não é a interpretação, mas a interpretação dogmática, que ele considera "um perigo e uma morte mental".

O botânico Marcos Buckridge, do Instituto de Biociências  da USP e integrante do Grupo de Estudos em Cultura e Humanidades Computacionais, foi um dos debatedores convidados do evento. Ele quis saber do expositor se nas humanidades pode ocorrer a mesma coisa que acontece nas ciências, onde teorias são ampliadas por novas formulações teóricas ("Newton não foi destruído, mas sim ampliado por Einstein"). Ele deu como exemplo os efeitos da Revolução Francesa e da Revolução Americana sobre a política. Para Shumway, no caso da filosofia política as ideias estão sempre sendo revistas. "Nela, estamos no domínio das humanidades. Por outro lado, a política como prática está em outras áreas."

O outro debatedor convidado foi Marcos Cuzziol, também integrante do grupo de estudos e especialista em games, realidade virtual e outras aplicações digitais, disse que existem dois tipos de algoritmos. Um deles é de algoritmos que encontram padrões em massas de dados, caso das redes neurais, que reconhecem escrita, rostos e outras coisas, "mas nunca é uma interpretação humana, é sempre um sistema olhando para o passado, que são os dados". Outros algoritmos, afirmou, são mais propositivos, como os genéticos, que propõem soluções aleatórias e escolhem a que identifica como a melhor. "Esse tipo de algoritmo não olha para o passado. Mas a ação dos algoritmos nunca vai ser um tipo de interpretação humana sobre alguma coisa, será sempre amoral, podendo ter resultados danosos."

Shumway concordou com a ideia de um algoritmo baseado em dados do passado, mas disse considerar como visão humanista o estudo sobre a história do algoritmo e da fé que as pessoas depositam nele. "Tenho medo da ideia de que um algoritmo possa tomar uma decisão sem intervenção humana. Não existe leitura sem interpretação." Para ele, é preciso ser um pouco modesto sobre o que os algoritmos podem fazer.