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Uma homenagem à Marina Kohler Harkot e a sua trajetória de pesquisa e ativismo

por Mauro Bellesa - publicado 01/12/2020 03:53 - última modificação 01/12/2020 03:53

A Pró-Reitoria de Pós-Graduação, o IEA e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo realizaram no dia 21 de novembro o webinar "Mobilidade Ativa e Inclusiva: Construindo Pontes com a Sociedade - Uma Homenagem à Marina Harkot".

Marina Kohler Harkot
A socióloga Marina Kohler Harkot

O webinar em homenagem a Marina Kohler Harkot no dia 21 de novembro transcorreu sob a forte emoção que a precoce e trágica morte da pesquisadora e cicloativista causa em todos que a conheceram e naqueles que apoiam as causas que ela defendia.

A vida de Marina foi tão intensa, que relembrar, durante as quatro horas do encontro, sua formação, interesses e realizações, se não diminuiu a tristeza por sua morte, demonstrou o quanto ela continuará presente em nossa sociedade, graças a seu legado repleto de caminhos abertos a serem trilhados por jovens pesquisadores e ativistas contra a desigualdade de gênero e em defesa da mobilidade ativa.

O encontro Mobilidade Ativa e Inclusiva: Construindo Pontes com a Sociedade - Uma Homenagem à Marina Harkot teve a participação de pesquisadores, cicloativistas e familiares de Marina.

A homenagem da USP a ela foi uma iniciativa da Pró-Reitoria de Pós-Graduação, do IEA e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), onde Marina era doutoranda e pesquisadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade).

A realização do encontro motivou o IEA e divulgar no dia 25 de novembro uma “Carta Aberta sobre Mobilidade Ativa e Inclusiva”, na qual é defendida uma série de "sugestões para as bases de uma política de mobilidade urbana mais eficiente, ativa e inclusiva para cidades, em particular a de São Paulo".

Mobilidade ativa

O que caracteriza a mobilidade ativa é o transporte de pessoas sem o uso de veículos motorizados. Os principais exemplos dela são o caminhar e o uso de bicicleta.

Pesquisadores e ativistas veem a mobilidade ativa como meio de redução do trânsito e da poluição atmosférica na cidade, além de uma contribuição direta ou indireta (redução da poluição e de acidentes) para a saúde da população.

Para ser viabilizada, é preciso que as políticas públicas sobre a mobilidade urbana promovam a integração de todos os meios de transporte em toda a cidade e a segurança de sua prática, inclusive com adequação de calçadas e criação de ciclovias apropriadas.

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No webinar, foram apresentadas e comentadas diversas linhas de pesquisas desenvolvidas por Marina e por outras pesquisadoras que trabalharam com ela, não apenas os trabalhos ligados as dificuldades que as mulheres encontram para utilizar a bicicleta.

Trajetória acadêmica

O encontro foi constituído de três painéis. O tema do primeiro foi "A trajetória de pesquisa de Marina Harkot: das mulheres ciclistas aos territórios construídos a partir das subjetividades".

Os expositores foram: Paula Freire Santoro, orientadora de Marina e coordenadora do LabCidade; Haydée Svab, doutoranda do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP; Paulo Fernando Garreta Harkot e Maria Claudia Mibielli Kohler, pais de Marina; e Felipe Burato, seu marido.

Segundo Paula Santoro, Marina defendia a existência de uma política educacional que fosse um instrumento para várias formas de superação na nossa sociedade.

Comentou que um dos capítulos da dissertação de mestrado de Marina contém um levantamento extensivo sobre como coletar amostras nas pesquisas sobre gênero e bicicleta e possibilidade de pesquisas.

Ela também falou de vários tópicos presentes nos estudos de Marina, como a violência de gênero moldando não só o comportamento das mulheres, como o território onde elas se locomovem e a forma como o fazem.

Gênero e mobilidade

A bicicleta era o principal meio de transporte de Marina Kohler Harkot e isso a levou ao cicloativismo há oito anos, adotando a mobilidade ativa para discutir as relações de gênero.

Socióloga formada pela FFLCH-USP, obteve o título de mestre pela FAU-USP com a dissertação “A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo”.

Atualmente era pesquisadora do LabCidade, na FAU-USP, onde desenvolvia pesquisa de doutorado na área de planejamento urbano e regional.

Atuava também como consultora em planejamento urbano, sobretudo na elaboração de planos diretores municipais e políticas inclusivas para mulheres.

A defesa do ciclismo urbano era intensa no seu dia a dia. Participou do Conselho Municipal de Transporte e Trânsito da cidade de São Paulo e dirigiu a Ciclocidade.

Atropelamento

No início da madrugada de 8 de novembro, um domingo, tudo isso foi interrompido brutalmente: Marina Kohler Harkot morreu aos 28 anos, atropelada enquanto pedalava na primeira faixa à direita da Avenida Paulo VI, no bairro de Pinheiros, em São Paulo.

O motorista, José Maria da Costa Jr., 33, não prestou socorro a Marina e fugiu. Uma policial militar de folga que passava pela avenida chamou o Samu. Ela chegou a ser atendida, mas morreu no local.  O motorista foi identificado graças a placa do carro, anotada pela por outro motorista e repassada à policial.

Na manhã do dia 10 de novembro, a Polícia Civil pediu a prisão preventiva do motorista, considerando que ele assumiu o risco de matar ao não prestar socorro à ciclista. Ele se apresentou à tarde no 14º Distrito Policial, onde foi indiciado por homicídio culposo (sem a intenção de matar).

Ficou calado durante o depoimento e foi liberado, pois a legislação eleitoral só permite prisão em flagrante nos cinco dias anteriores ao pleito. Segundo seu advogado, Costa Jr. alega não ter prestado socorro e fugido por ter ficado “assustado” com o acontecimento.

No dia 27 de novembro a Justiça aceitou a solicitação dos advogados da família de Marina e do Ministério Público para que o atropelador seja indiciado por homicídio doloso (com a intenção de matar).

Segundo Haydeé Svab, Marina a procurou em 2016 e lhe disse que queria tratar da relação entre mulheres e o uso de bicicletas. Elas tiveram diversos encontros para discutir transporte ou questões de gênero, além de realizaram oficinas juntas e serem parceiras de ativismo e em trabalhos profissionais.

Um desses trabalhos foi uma consultoria para o Banco Mundial sobre mobilidade e gênero na cidade de São Paulo. “Aprendi com ela a trabalhar do ponto de vista da pesquisa qualitativa”, afirmou.

Felipe Burato disse que a grande questão para Marina era a desigualdade de gênero e que o ciclismo era uma forma de discutir isso. “Pedalar para ela era um ato político, pedalava por todas as mulheres da periferia.”

Para ele, Marina não se propunha simplesmente a buscar soluções aplicáveis para a mobilidade feminina: "A mudança que considerava preciso construir é começar a olhar a cidade a partir do afeto, não de quilômetros de ciclovias e avenidas”.

A mãe de Marina apresentou um relato da formação da filha desde o início da adolescência, quando ela quis aprender alemão. Falou dos períodos em que Marina passou na Alemanha, na França e na Suíça e de quando pensou em deixar o curso de sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e prestar vestibular para a FAU.

Foi a mãe que a aconselhou a terminar o curso de sociologia, se aprimorar em metodologia da pesquisa e depois fazer pós-graduação na FAU.

O pai contou como Marina o influenciou intelectualmente, tornando-se sua “consultora em ciências sociais”, além de lhe mostrar que mais importante do que as normas legais era a mudança no comportamento das pessoas, mostrando que "o politicamente incorreto, é isso mesmo, politicamente incorreto".

Levantamentos

“Dados de Mobilidade Ativa e Inclusiva da Cidade São Paulo” foi o tema do segundo painel, com exposições de Carol La Terza, da Rede Nossa São Paulo, Jô Pereira, diretora geral da Associação de Ciclistas Urbanos de São Paulo (Ciclocidade); e Letícia Lindenberg Lemos, doutoranda da FAU-USP. Os comentaristas foram Paulo Saldiva, do IEA e da Faculdade de Medicina (FM) da USP, e Ligia Vizeu Barrozo, do IEA e da FFLCH-USP.

Carol La Terza disse que Marina "foi orientadora de muita gente sem precisar ser uma professora formalmente". “O trabalho dela reverbera no meu trabalho e de todo mundo.” Carol destacou o interesse da socióloga em diversos temas, como desigualdade, mobilidade e relação das mulheres e da população LGBT+ com a cidade.

Além de participar da criação de um Grupo de Trabalho sobre Gênero na Ciclocidade em 2015, outra iniciativa de Marina na associação foi realizar um projeto a respeito de feminismo sobre duas rodas, afirmou Jô Pereira.

A pesquisa mostrou as visões de mulheres ciclistas e não ciclistas das cinco regiões de São Paulo sobre sua relação com o território, com a violência de gênero e outros aspectos.

Letícia Lindenberg Lemos ressaltou o interesse de Marina em obter dados das regiões mais periféricas da cidade de São Paulo, realizando pesquisas em todas as prefeituras regionais. Destacou que a questão central para ela eram os problemas relacionados com gênero e como as mulheres os vivenciam. Também afirmou que os trabalhos de Marina "humanizavam a pesquisa" a partir da análise qualitativa dos dados.

Nos comentários que fez às exposições do painel, Lígia Vizeu Barrozo, geógrafa que trabalha com dados de saúde, apresentou diversos dados sobre o uso de bicicleta na cidade de São Paulo coletados em inquérito sobre saúde de adultos feito pela FM-USP em parceria com a Prefeitura em 2015.

Ela apresentou também estudos que fez a partir de dados coletados pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), inclusive o mapeamento de áreas com maior número de acidentes.

Para Paulo Saldiva, a mobilidade ativa é um marco civilizatório e vai muito além das ciclovias, pois promove a saúde e o acesso a direitos humanos. Ele considera que não faltam projetos, mas compromisso dos governantes

Saldiva mencionou as 35 mil mortes em acidentes de trânsito por ano no Brasil. “Isso é mais do que os mortos na guerra civil de Angola, que durou 26 anos.”

Para ele, "o trânsito é produto do ódio e da política atual, com as mortes em São Paulo sendo fruto da elevação da velocidade permitida".

Políticas públicas

O terceiro painel foi “Políticas Públicas: O Que Deve Ser Feito?”. Os expositores foram Kelly Fernandes, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec); Gilberto Frachetta, do Conselho Municipal de Saúde; e Henrique Frota, do Instituto Pólis. Os comentaristas foram Orlando Strambi, da Escola Politécnica (EP) da USP e do WRI Brasil, e Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências (IB) da USP e coordenador do Centro de Síntese USP Cidades Globais, do IEA.

A participação de Marina no Conselho Municipal de Transporte foi fundamental para haver paridade de gênero entre os conselheiros, segundo Kelly Fernandes.

Kelly apresentou um panorama da legislação sobre segurança no transporte, das alterações no Código de Trânsito Brasileiro, dos dados sobre acidentes e mortes e da fiscalização do trânsito.

Para ela, há uma lacuna entre as políticas públicas para segurança no trânsito e a realidade do funcionamento da cidade, "lacuna que se amplia na periferia".

Gilberto Fraqueta tratou especificamente da mobilidade inclusiva. Ele considera que “praticamente não há políticas públicas para os portadores de deficiência”. Hoje há uma mudança de paradigma, disse, lembrando a criação pela ONU da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da qual o Brasil é signatário.

Participantes da homenagem a Marina Harkot - 21/11/2020
Participaram do webinar pesquisadores, ativistas da mobilidade ativa e inclusiva e familiares da homenageada

“O ambiente passou a fazer parte dos obstáculos à locomoção das pessoas. Deixou de ser um problema só das pessoas e passou a ser uma preocupação da sociedade e do poder público.”

Henrique Frota disse que Marina fez parte da história da parceria entre o Instituto Pólis e o LabCidade e detalhou a concepção do instituto sobre mobilidade como um direito à cidade e à cidadania.

“A mobilidade não pode ser vista apenas como deslocamento de um ponto A para um ponto B. É um direito social, um direito humano.”

Para ele, não se pode falar em mobilidade apenas em termos de políticas públicas, “ela tem de ser vista de maneira integrada no conjunto das políticas urbanas”.

Oswaldo Strambi disse que nós últimos anos é difícil um candidato a prefeito não ter alguma proposta para estimular o uso de bicicletas. Sobre o que deve ser feito, disse ter tido algumas respostas durante o congresso anual da Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Transporte, realizado dias antes do webinar.

Segundo ele, nas três conferências magnas do congresso, feitas por pesquisadores estrangeiros renomados, uma das soluções apontadas é incentivar o uso de bicicletas.

Marcos Buckeridge afirmou problemas complexos exigem soluções complexas: “Primeiro é preciso identificar a complexidade e depois detectar o comportamento sistêmico”.

“Não se pode falar de mobilidade sem falar de saúde, ambiente, habitação e educação. É muito importante termos leis e capacitação de pessoas, mas é preciso também uma gestão sistêmica eficiente”, comentou

Fotos (a partir do alto): arquivo da Família Harkot; IEA-USP