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As conexões entre obra de arte, apreciação estética e 'ser movido'

por Flávia Dourado - publicado 28/03/2014 11:10 - última modificação 12/02/2016 11:00

O tema foi explorado pelo pesquisador alemão Winfried Menninghaus na conferência O Que Significa Ser Movido por uma Obra de Arte?, que o IEA realizou no dia 20 de março.
Winfried Menninghaus - 2
Menninghaus: "As emoções tristes
são mais absorventes e envolventes"

O que faz com que uma obra de arte seja comovente? Por que determinados filmes, peças de teatro, poemas, músicas, quadros comovem mais que outros? Instigado por essas questões, o pesquisador alemão Winfried Menninghaus dedica-se a investigar o que significa "ser movido" por algo no contexto da apreciação estética.

De acordo com ele, "o termo 'mover' remete à ideia de tocar, abalar, arrebatar, mexer, mas isso não diz muito sobre os fatores que despertam a sensação de 'ser movido'. O ódio e a raiva, por exemplo, são sempre direcionados ao agente que traz essas emoções à tona. Mas o 'ser movido' carece dessa objetividade. É baseado mais no componente subjetivo, relacionado à forma como nos sentimos afetados".

No dia 20 de março, o pesquisador esteve no IEA para explorar o tema na conferência O Que Significa Ser Movido por uma Obra de Arte?, que teve abertura de Helmut Galle, professor do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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Em sua exposição, ele tratou dos resultados de uma série de estudos que vem conduzindo no Instituto Max Planck de Estética Empírica, do qual é diretor-fundador. Criado em 2013, o instituto tem como proposta  o uso de métodos científicos para investigar as bases psicológicas, neurais e socioculturais das percepções, avaliações e preferências estéticas.

Menninghaus é membro titular da Academia de Ciências e Humanidades Berlin-Brandenburg e suas pesquisas concentram-se em estética filosófica, evolutiva e empírico-psicológica; em modelos, fenômenos de fronteira e funções da estética na mitologia e no mundo da vida; e na literatura escrita a partir de 1750, com ênfase no romantismo alemão e na literatura do século 20.

OLHAR EXTERNO

O primeiro estudo apresentado pelo pesquisador na conferência partiu de duas questões-chave centradas na psicologia da emoção: 1) que eventos/cenários podem ser rotulados como comoventes? 2) que características cognitivas e afetivas são comuns a eles?

No estudo, os 229 participantes que compunham a amostra foram instruídos a lembrar, descrever e classificar, segundo uma escala de 1 a 45, momentos que consideravam comoventes. Os mais citados foram morte/enterro, doença, gravidez/parto e casamento.

De acordo com o Menninghaus, as respostas apresentaram dois grandes pontos em comum. Primeiramente, os eventos relatados estavam, de alguma forma, em conformidade com os padrões morais e aos ideais dos participantes. Além disso, em todos os casos o "ser movido" configurou-se como uma emoção experimentada por um observador externo.

"Isso quer dizer que há distanciamento entre o evento que comove e quem é comovido. Tem maiores chances de se comover aquele que está na posição de testemunha e não pode, portanto, modificar os fatos ou ser afetado por eles", esclareceu.

Dessa forma, o reencontro de duas pessoas que estavam separadas há muito tempo é mais comovente para um terceiro, que observa a reaproximação, que para os implicados na situação. "Não é comovente se você confessa um adultério a alguém, mas se você testemunha uma confissão desse tipo, é possível ficar comovido", exemplificou.

MISTURA DE SENTIMENTOS

Com o objetivo de descobrir quais as emoções mais características do estado de "ser movido" e dimensioná-las qualitativamente, Menninghaus desenvolveu um estudo de livre-associação com 815 pessoas. Os participantes foram solicitados a descrever, por meio de substantivos, as emoções que sentiam ao vivenciar momentos comoventes e, então, associá-las a oito termos vinculados ao universo psicológico da palavra "mover", que correspondem a dimensões emocionais do estado de "ser movido": comovente, excitante, tocante, extasiante, arrebatador, emocionante, revigorante, estimulante [em tradução livre a partir do inglês]. Entre os substantivos mais citados pelos participantes figuram alegria, tristeza/pesar, amor, sentimento e lágrimas.

Os oito termos voltaram a ser utilizados por Menninghaus num estudo de diferencial semântico, agora com uma amostra menor, de 434 pessoas. Partindo de uma lista de 40 pares de adjetivos antagônicos, como quente/frio e claro/escuro, os participantes foram orientados a escolher, em todos os pares, o adjetivo que melhor descrevia cada um dos termos. Em seguida, tiveram que avaliar, segundo uma escala pré-determinada, o grau de compatibilidade entre o adjetivo selecionado e o termo vinculado.

Com base nas escolhas e avaliações dos participantes, observou-se que "os sentimentos de 'ser movido' são amplos, e não estreitos; elevam, e não deprimem; são profundos, e não rasos; são quentes, e não frios; absorvem, e não causam desapego; são maiores do que menores; são mais finos do que brutos; mais suaves do que duros", conforme resumiu o pesquisador.

A partir do cruzamentos dos dados obtidos nestes dois estudos, foi possível chegar a uma matriz de proximidade/distanciamento entre o sentimento de comoção e as emoções negativas e positivas. Representada num gráfico, a matriz mostrou que o estado de 'ser movido' fica numa posição intermediária, num continuum entre esses dois extremos emocionais.

Para Menninghaus, isso revela que a comoção é um sentimento misto, resultante da combinação entre tristeza e alegria. "Os sentimentos negativos não podem disparar a comoção se não estiverem associados a sentimentos positivos, como o de ter empatia pela pessoa envolvida na situação comovente. Da mesma forma, os eventos alegres não podem ser comoventes se não há alguma coisa triste por trás, como uma batalha ou um longo tempo de separação, por exemplo", explicou.

"SER MOVIDO" NO CINEMA

Para entender melhor como o sentimento de tristeza, o estado de "ser movido" e apreciação estética interagem, Menninghaus conduziu uma pesquisa com foco na obras cinematográficas. Os 76 participantes do estudo foram levados a uma sala de cinema, na qual assistiram a 36 clipes de filmes, com duração de 57 a 133 segundos, todos representando o momento em que a protagonista fica sabendo da morte de um ente querido. Em seguida, foram questionados sobre qual era motivação para verem o filme todo. O objetivo era identificar se o fator mais determinante nessa motivação era sentir-se triste ou comovido.

Com base nas respostas, Menninghaus chegou à conclusão que o sentimento de tristeza está diretamente associado à vontade de ver o filme. No entanto, essa associação é mais expressiva quando a tristeza é apontada como o gatilho da comoção e esta, por sua vez, é assinalada como a causa do desejo de ver o filme.

Outro dado importante levantado no estudo foi o alto grau de correlação entre o sentimento de "ser movido" e a apreciação positiva do filme, isto é, o prazer estético. "Ser comovido por uma obra de arte implica um julgamento positivo em relação ao seu alcance estético", observou Menninghaus.

Segundo o pesquisador, isso indica que "os receptores de arte experimentam a tristeza como prazer não porque gostam de sentir-se tristes, pesarosos ou empáticos, mas porque a tristeza, piedade e empatia envolvidas no ato de ver o filme constitui um dos diversos fatores que, juntos, levam à emergência do sentimento de 'ser movido'".

Além disso, destacou que o sentimento de comoção é experimentado como algo inerentemente recompensador, mesmo quando as emoções tristes estão presentes. "Acreditamos que as pessoas vão ao cinema para se sentirem comovidas, e não para se sentirem tristes; a tristeza só contribui para a comoção. E, com a comoção, vem a apreciação estética", acrescentou.

COMOÇÃO NA LITERATURA

A fim de avançar suas pesquisas para além das interações e correlações entre sentimentos e chegar a evidências causais envolvidas na apreciação estética, Menninghaus escolheu explorar um campo com o qual está habituado: a literatura.

Para trabalhar nesse terreno familiar, o pesquisador optou pela teoria do linguista Roman Jakobson (1896-1982) sobre os paralelismos continuados presentes nas poesias, isto é, as similaridades linguísticas características desse gênero literário. Segundo essa concepção teórica, a linguagem poética é marcada por padrões de recorrência/repetição nas dimensões fonética, morfológica, sintática e semântica. Conforme ilustrou Menninghaus, esses padrões podem ser facilmente observados na famosa frase atribuída a Júlio César "Veni vidi vici" (Vim, vi e venci).

A partir desse referencial jakobsoniano, foram criadas três hipóteses: 1) as similaridades poéticas são fundamentais na definição da essência poética de um texto; 2) essa essência poética é um indicador da avaliação estética; e 3) a presença ou ausência de similaridades poéticas influencia respostas emocionais.

Para testar essas hipóteses, Menninghaus desenvolveu um estudo voltado para os efeitos da presença ou ausência de similaridades em textos poéticos. O primeiro passo foi escrever uma série de poemas nas quais as marcas linguísticas indicadas por Jakobson estavam presentes e, então, criar uma nova versão para cada um deles, eliminando os padrões de recorrência e repetição, mas sem alterar o conteúdo.

Em seguida, os participantes do estudo foram expostos às duas versões dos poemas para que os avaliassem em termos de beleza, gosto, melodia e comoção. A ideia era verificar se cada versão comoveu de forma alegre ou triste; se despertou sentimentos de alegria ou tristeza; se suscitou sensações negativas ou positivas.

De acordo com o pesquisador, os dados mostram que a linguagem poética acentua  — e  não reduz — tanto os sentimentos de tristeza quanto os de alegria. "Nossa hipótese é que a tristeza, por ser acentuada pela forma poética, contribui para intensificar a sensação de 'ser movido' e que essa interação entre comoção e tristeza pode ser vivenciada como algo inerentemente prazeroso e recompensador".

Além disso, continuou, a natureza intrinsecamente gratificante do sentimento de ser movido por uma obra de arte está fortemente arraigada às características formais, como é o caso dos paralelismos linguísticos da poesia. "Assim, ser movido está diretamente ligado à apreciação estética", arrematou.

O PODER DA TRISTEZA

As interpretações das descobertas feitas por Menninghaus ao longo dessa série de estudos foram amparadas por duas premissas interligadas. A primeira é a de que as obras de arte competem por atenção, por um envolvimento emocional intenso e por acesso à memória afetiva. A segunda é a de que as emoções negativas são particularmente poderosas na priorização desses três elementos.

Segundo o pesquisador, as evidências psicológicas coletadas em seus estudos mostram que emoções tristes são mais absorventes e envolventes, ao passo que as emoções alegres são esquecidas com mais facilidade e processadas num ritmo mais lento.

"Ter prazer em emoções negativas e na tragédia não é exceção, mas regra. E por que sentimos isso? A beleza sem modificações e completamente positiva carece de poder para prender a atenção e aprofundar trajetórias de envolvimento afetivo. Por isso, pode se tornar vazia, desinteressante, tediosa e destituída de impacto duradouro", resumiu.