Das disciplinas à transdisciplinaridade

por Nelson Niero Neto - publicado 07/02/2020 12:20 - última modificação 07/02/2020 12:20

Desde a Grécia Antiga discute-se como diferentes saberes podem se relacionar. Nas escolas, é preciso promover cada vez mais interações entre as áreas do conhecimento

Pontos-chave
  1. Desde a Grécia Antiga, reconhece-se que há muitas maneiras de construir saberes sobre um mesmo objeto de estudos.

  2. A partir da proposta do método cartesiano, houve uma tendência a se fragmentar os objetos de estudos para que fossem analisados de forma mais específica, o que levou a criação de disciplinas também mais específicas e com cada vez menos comunicação entre si.

  3. Na escola, superar a fragmentação passa pela necessidade de se trabalhar por projetos e problemas, mobilizando alunos e educadores para trabalhar de forma coletiva e envolvendo diferentes áreas do conhecimento.

  4. A formação dos professores também precisa superar a divisão disciplinar, para que esse modelo seja superado na Educação Básica e já há modelos que se aproximam dessa proposta, como na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

Por Rodrigo Ratier e equipe

Para começar a palestra "Escola: Fragmentação Disciplinar e Transdisciplinaridade", Naomar de Almeida Filho convidou professores que estavam na plateia para participar de uma atividade. Localizados ao redor de uma mesma cadeira, cada um deles precisou descrever como via o objeto. Os participantes foram apresentando suas descrições, e o palestrante os convidou a interagir com a cadeira de outras maneiras: sentar nele, falar sobre o que sentiam, o que já sabiam sobre ele, etc. O exercício disparou a reflexão sobre o tema da palestra. Como cada um observava o objeto de um ponto de vista diferente, a visão do objeto apresentada também foi diferente. "Essa é uma questão muito simples para mostrar que problematizar qualquer objeto de conhecimento implica uma consideração das múltiplas possibilidades de apreensão", afirmou.

Assim como compartilhar diferentes visões sobre uma cadeira pode ajudar a compreender esse objeto de maneira mais complexa, considerar os pontos de vista trazidos por diferentes áreas do conhecimento também ajuda cientistas, estudantes e professores a compreender melhor os objetos estudados por cada um. Esse foi o tema debatido durante a abertura do segundo encontro do Ciclo A Escola: Espaços e Tempos das Ações Docentes, da Cátedra de Educação Básica da USP. Além de Almeida Filho, o professor da USP José Eli da Veiga também participou da discussão como debatedor.

O conhecimento, da Grécia à contemporaneidade

O afresco Escola de Atenas, do pintor renascentista Rafael Sanzio (1483-1520), serviu de mote para representar duas escolas de pensamento originadas na Grécia Antiga: a de Platão e a de Aristóteles. A pintura retrata esses dois filósofos, que criaram propostas para a compreensão do mundo e da produção de conhecimento.

 

Veja os vídeos da palestra na íntegra: Parte 1 | Parte 2

Platão defende que o mundo, depois de criado, existe para todo o sempre preservado pelos dogmas (doxa). É possível conhecê-lo pela produção de ciência (o que chama de epistemê) e imitá-lo (mimesis). O filósofo propõe, ainda, que os artistas (que se dedicam à poiesis) devem ser expulsos da pólis.

Já Aristóteles argumenta que nada pode durar para sempre e propõe a criação de uma Teoria dos Saberes, divididos em: saber racional (epistemê), técnico (technê), prático (phronesis), a Sabedoria (sophia) e o saber criativo (poiesis).

“Essa é uma discussão que permanece até hoje", resumiu o palestrante, antes de apresentar perspectivas mais recentes sobre esse mesmo tema. Muitos séculos depois, o francês René Descartes fundou a epistemologia moderna, que possibilita que todos possam produzir conhecimento, desde que sigam o método cartesiano. Esse método é composto por quatro regras: a primeira é duvidar e apenas acreditar se houver evidências; a segunda é dividir os problemas em quantas partes forem necessárias para que ele seja solucionado; a terceira é organizar os pensamentos em ordem, do mais simples para o complexo; e, por fim, a quarta consiste em inventariar explicações de modo que não se deixe nada de fora.

Qual a relação da ideia de transdisciplinaridade com a obra de Paulo Freire?

O brasileiro Paulo Freire (1921-1997) destacou, em toda sua obra, a necessidade de não apenas ensinar os alunos a ler e a escrever, mas ensiná-los a ler o mundo. "Freire propõe atualização da tríade: ler, escrever e contar", destaca Nílson José Machado. Ao recorrer às estratégias de trabalhos por problemas e por projetos e de forma transdisciplinar, os estudantes são ensinados a observar os objetos de conhecimento da maneira como eles se apresentam no mundo, como defendia o autor, e podem fazer propostas de intervenção para transformar as realidades em que vivem.

Foi o pensamento de Descartes que deu origem à moderna noção de disciplinas. “No método cartesiano, o conhecimento é fragmentado para solucionar os problemas", explica Almeida Filho. Isso significa que, ao decompor um objeto de estudo, diferentes sujeitos podem se tornar responsáveis por investigar cada uma de suas partes, sem estabelecer nenhuma comunicação entre si.

O exemplo mais comum se dá nas universidades, em que há departamentos e institutos que se organizam de maneira isolada uns dos outros. Na escola, algo parecido acontece: os professores responsáveis pelas diversas disciplinas – sobretudo nos anos finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio – muitas vezes não estabelecem relações entre os conteúdos que estão sendo estudados em cada uma delas.

A criação das disciplinas não implica, necessariamente, algo ruim. O surgimento de pessoas muito especializadas possibilitou que grandes descobertas fossem feitas, defendeu o debatedor José Eli da Veiga. “A disciplinaridade resultante do pensamento de Descartes foi fundamental. Na economia, por exemplo, não há nada que tenha aumentado mais a produtividade do que a especialização do trabalho", exemplifica o pesquisador.

Alternativas para a desfragmentação

Segundo Almeida Filho, há um consenso de que é necessário haver uma integração maior entre diferentes áreas do conhecimento. Nesse contexto, surgiu a noção de transdisciplinaridade, em que o foco está no objeto de estudo e na ideia de que, ao estudá-lo sob a ótica das diferentes disciplinas, é possível desenvolver um conhecimento mais profundo sobre ele. “É como alguém que, em uma fotografia, olhe para um pixel, mas sem deixar de observar a foto inteira", apontou o professor Nílson José Machado, coordenador acadêmico da Cátedra de Educação Básica.

A ideia de transdisciplinaridade foi consolidada em algumas obras listadas por Veiga, como O Manifesto da Transdisiciplinaridade, de Basarab Nicolescu, e também em livros do francês Edgar Morin, como Os 7 Saberes Necessários à Educação do Futuro. Nas escolas brasileiras, a ideia de transdisciplinaridade também é frequentemente apresentada em relação com a de transversalidade, ou seja, de temas que podem ser abordados sob perspectivas de todas as áreas do conhecimento.

Entre as abordagens possíveis para promover uma formação transdisciplinar, Almeida Filho destaca a aprendizagem por problemas e a aprendizagem por projetos. “Essas estratégias trabalham com coletivos de docentes que compartilham valores, princípios e paradigmas para que não seja apenas uma conversa, mas uma produção colaborativa", afirma o palestrante. Por isso, é importante que os professores possam conversar e pensar sobre os problemas juntos. Além dos coletivos, é necessário utilizar estratégias de mobilização dos alunos – como o levantamento de um problema ou de um objeto de estudo sobre o qual a pesquisa será desenvolvida.

Transdisciplinaridade e formação de professores

Um empecilho para o uso de abordagens trans e interdisciplinares na Educação Básica é a própria formação dos professores, que se dá de forma fragmentada nas disciplinas que escolheram cursar na graduação. “Quando se chega no chão da escola, professores de química e biologia, por exemplo, passaram por formações que não tiveram nenhuma articulação do processo formativo", explica Almeida Filho.

O palestrante foi presidente da comissão de implantação da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e, nessa posição, criou um modelo de formação que pretendia superar a divisão disciplinar do conhecimento na formação de professores. Lá, os estudantes entravam sem escolher cursos e recebiam uma formação inicial. Depois, escolhiam a área em que fariam sua licenciatura: Linguagem, Códigos e suas tecnologias; Matemática, Computação e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias; Ciências Humanas e suas tecnologias; ou Artes e suas tecnologias.

Quem é José Eli da Veiga

É professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP). Por trinta anos, foi docente do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA-USP). Tem 27 livros publicados e é colunista do jornal VALOR Econômico, da revista Página22 e da Rádio USP. Mantém o site Sustentáculos (sustentaculos.pro.br), sobre sustentabilidade, voltado aos professores do Ensino Médio.

Quem é Naomar de Almeida Filho

Médico, mestre em Saúde Comunitária, doutor em Epidemiologia. É professor titular de Epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor visitante em universidades nos Estados Unidos, no Canadá, no México e na Argentina. Foi reitor da UFBA e, na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), foi presidente da comissão de implantação e reitor pro-tempore. Autor de diversos estudos sobre a universidade e sua relação com a sociedade. É professor visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP).

Terminada essa licenciatura, os estudantes poderiam seguir seus estudos em habilitações específicas, na pós-graduação ou na formação profissional, em cursos como Direito, Engenharia, Psicologia, e assim por diante, de acordo com a área que tivessem estudado.

Nessa iniciativa, a universidade também assumiu a coordenação de três Complexos Integrados de Educação -- escolas de Ensino Médio da rede estadual, que realizassem trabalhos por problemas e por projetos e nas quais os licenciandos poderiam fazer parte da sua formação. Como costuma ocorrer com iniciativas do tipo em escolas e redes, há resistências a superar.  “Essa estrutura foi implantada, mas tenho um pessimismo se sobre sua sobrevivência", finaliza Almeida Filho.