Os desafios da formação inicial e seus impactos

por Nelson Niero Neto - publicado 01/08/2019 18:05 - última modificação 20/08/2019 14:59

Cursos de Pedagogia e licenciaturas perdem a oportunidade de preparar os futuros professores para a prática da sala de aula e transformam as iniciativas de formação continuada em "supletivos" do que deveria ter sido a graduação
Pontos-chave
  1. Diversos estudos mostram que cursos de Pedagogia e licenciaturas ainda falham em formar educadores para exercer a prática da sua profissão.
  2. Há um receio das universidades de discutir práticas de sala de aula, com medo de que esses debates representem uma visão tecnicista do fazer docente.
  3. É possível abordar metodologias apresentando aos futuros educadores os fundamentos teóricos que as sustentam.
  4. Com a reformulação dos cursos de formação de professores, espera-se uma formação educacional mais sólida e mais atenção aos estágios, articulando universidade e escolas.

Por Rodrigo Ratier e equipe

Mesmo nas melhores universidades públicas, a formação dos professores na graduação é insuficiente. Essa é a conclusão a que chegou a professora Bernardete Gatti durante sua carreira pesquisando sobre o tema. A docente apresentou a palestra “Formação do Professor da Educação Básica: Um panorama das questões fundamentais" durante o  segundo encontro do Ciclo Ação e Formação do Professor, organizado pela Cátedra de Educação Básica da USP.

Segundo a pesquisadora, que acaba de lançar o livro Professores do Brasil: Novos Cenários de Formação, em uma parceria entre a Fundação Carlos Chagas (FCC) e a UNESCO, há um grande descompasso entre a formação dos professores e a realidade encontrada por eles ao assumir uma sala de aula. "Quando a gente olha as ementas, as bibliografias, as disciplinas oferecidas, elas contribuem muito pouco com a formação de um perfil claro de um docente para a Educação Básica", afirma Gatti.

Uma das principais características dos cursos levantada pela palestrante é a fragmentação. Principalmente na formação de professores para os anos finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, ainda prevalece a perspectiva do bacharelado, em que a formação pedagógica dos futuros docentes é realizada de maneira completamente separada da aprendizagem dos conteúdos da área em que estão se formando. "Não há muita conversa entre essas instâncias e a formação propriamente educacional desses licenciandos é muito frágil", destaca. O desafio de preparar bons docentes é ainda maior quando se analisam os dados sobre onde e como são formados: 80% das matrículas estão em instituições particulares e 86% dos estudantes de pedagogia realizam o curso a distância.

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O medo do tecnicismo

A principal falha na formação inicial está na ausência de momentos para se discutir aspectos da prática docente, como metodologias de ensino de alfabetização, por exemplo , planejamento e avaliação escolar ou até para lançar um olhar para o currículo da Educação Básica. "Mesmo que seja uma formação pra ele ter uma perspectiva crítica em relação ao currículo, porque o professor deverá desenvolvê-lo nas suas práticas", afirma a pesquisadora.

O que explica esse descompasso? Parte está na tradição universitária brasileira. A maneira como as universidades principalmente públicas enxergam o conhecimento e a formação no Ensino Superior foi herdada dos séculos 18 e 19. Nesse contexto, há pouco espaço para que aspectos ligados ao dia a dia docente sejam discutidos.

"Há uma identificação do conceito de prática com tecnicismo", diz Gatti, que reforça que é importante diferenciar os dois. É necessário reconhecer que o trabalho pedagógico é uma prática cultural, de comunicação e de estabelecimento de relação entre mestre e aluno. Por isso, mesmo que práticas e metodologias sejam apresentadas ao futuro educador, seria impossível que ele apenas as replicasse. "O professor não é um robozinho. Por mais que ele tenha roteiro de trabalho, ele não é capaz de repetir exatamente [uma metodologia]", afirma.

Pergunta da plateia

Como a atratividade da carreira docente também impacta na seleção e formação dos alunos das universidades?

Muitas discussões ressaltam que os melhores alunos das melhores escolas de Ensino Médio não optam pela carreira de professor. Isso é um fato. "Quando olhamos para os dados, quem procura de licenciatura são de fato alunos de baixa renda e de classes menos favorecidas", afirma a professora Bernardete Gatti. Mas essa não deve ser a justificativa pela qualidade ruim da formação dos professores. "O problema é nosso, a universidade está ainda no século 19, de costas para os seus alunos", destaca ela. É responsabilidade das instituições de ensino superior garantir que seus estudantes sejam bem preparados para exercer a docência e desenvolver iniciativas de ampliação de repertório cultural, por exemplo.

Portanto, é possível sim que aspectos metodológicos sejam incorporados aos currículos dos cursos de formação de professores sem que sejam meramente apresentados como um passo a passo. "Qualquer método que você pense em utilizar ou oferecer para os estudantes ele tem seus fundamentos teóricos na psicologia, nas teorias de comunicação, nas teorias de desenvolvimento, na sociologia cultural, na antropologia", diz a professora.

Há uma perspectiva de que esse panorama mude. A resolução 2/2015 do Conselho Nacional de Educação determina novas diretrizes para os cursos de licenciatura e entra em vigor a partir de julho de 2019. Entre as medidas apresentadas está a proposta de que os conteúdos pedagógicos ocupem pelo menos 20% da carga horária dessas graduações e que elas possuam identidade própria e interdisciplinar. "Não pode ser um penduricalho do bacharelado", ressalta Gatti.

Impactos de uma formação deficiente

As deficiências dos cursos de graduação para futuros docentes têm grandes impactos sobre o sistema de Educação. Um deles é a o fato de que se formam menos professores do que o necessário para dar conta de todas as turmas, principalmente nas disciplinas que requerem especialistas.

Segundo dados do Inep de 2017, apenas 46% dos educadores brasileiros possuem formação na área que lecionam. Esse fenômeno se dá pela pequena oferta e interesse por cursos como Filosofia e Sociologia e também pela alta evasão nas licenciaturas, muitas vezes motivada também pelos problemas com os cursos. "A maioria das práticas didáticas de Ensino Superior não são motivadoras. Como é que você quer que aquele aluno, que vai aprender, sim, por imitação, por vivências, também tenha depois, na sua sala de aula, a capacidade de criar um ambiente motivador?", questiona Gatti.

Mesmo quando a formação inicial é a definida pela lei, a responsabilidade por superar as deficiências recai sobre as iniciativas de formação continuada. Um exemplo são grandes iniciativas como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), do Governo Federal, e o programa Ler e Escrever, do estado de São Paulo, que tratam de como professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental podem ensinar leitura e escrita. "Pelas diretrizes curriculares nacionais de 2006, isso é missão dos cursos de pedagogia", afirma a professora.

A questão dos estágios

Outro aspecto problemático dos atuais cursos de formação de professores está na maneira como os estágios obrigatórios estão desenhados. Dentro do atual modelo, eles podem ser distribuídos em diversas disciplinas e serem baseados apenas em observações. "A lei de estágio é muito boa. As engenharias, a arquitetura, a usam bem. Por que na Educação é falado pro aluno: 'Olha, vai lá na escola, fala com alguém, e traz um relatório' que ninguém lê na maioria dos casos?", questiona Gatti.

Quem é Bernardete Gatti

É diretora vice-presidente da Fundação Carlos Chagas (FCC), responsável pelo setor de pesquisas e educação. Membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Foi consultora da UNESCO e produziu pesquisas e livros sobre a formação de professores no Brasil. Foi professora da Faculdade de Educação da USP e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

As novas diretrizes para os cursos de licenciatura aumentam a carga horária de estágio para 400 horas. Para a palestrante, essas horam deveriam ser distribuídas ao longo do curso e articuladas às atividades de aprendizagem na universidade e a um projeto consolidado dentro da escola.

Alguns modelos inovadores já existem pelo país. É o caso das licenciaturas oferecidas pela Unesp de Rio Claro, no interior paulista. "Todo o estágio é baseado na ideia da interação intergeracional", explica Gatti. Estudantes de pedagogia são acompanhados pelos professores na escola onde realizam o estágio e tem um acompanhamento próximo dos docentes do Ensino Superior. Já na região de São Claro, a diretoria de ensino articula o trabalho junto às universidades locais. "Eles fazem uma programação de estágio, segundo alguns critérios, e com projeto para cada aluno. O professor que vai receber o aluno, no ano seguinte, já está preparado para recebê-lo e já sabe qual é a programação. Os coordenadores pedagógicos das escolas acompanham o estágio, e os professores da universidade vão uma vez por mês até elas", conta.