O saber e o ensinar articulados na escola

por Nelson Niero Neto - publicado 01/08/2019 18:05 - última modificação 11/06/2020 06:31

A maneira como compreendemos o conhecimento influencia o planejamento da prática em sala de aula
Pontos-chave
  1. A epistemologia é a área que estuda as concepções de conhecimento. A maneira como um professor enxerga o conhecimento influencia na maneira como organiza as situações para que os estudantes o construam.
  2. Dados são a unidade mais simples de organização. E a sabedoria é a mais complexa. Entre os dois, estão as informações e o conhecimento.
  3. Há diversas imagens que podem representar o conhecimento: um balde, um encadeamento, uma rede ou um iceberg. Todas interferem diretamente na maneira como o professor planeja suas aulas.

Por Rodrigo Ratier e equipe

Já faz algum tempo que está ultrapassada a ideia de que os alunos são "tábulas rasas" e que educar é despejar informações sobre eles para que aprendam. "Já há um acordo geral que o conhecimento se constrói", afirmou o professor Nílson José Machado durante sua palestra “Planejamento: Concepções de Conhecimento e Ações Docentes”, no segundo encontro do Ciclo Ação e Formação do Professor. Ainda assim, algumas práticas mostram que essa visão segue presente nas escolas. Machado apresentou outras perspectivas difundidas pela área da ciência que estuda o próprio conhecimento, a epistemologia.

A maneira como o conhecimento é encarado pelos educadores reflete diretamente nas suas práticas. "O modo como a gente pensa influencia o modo como a gente age", diz o especialista. Segundo Machado, conhecer as concepções sobre o saber pode ser uma maneira de promover uma maior integração entre a prática e as ideias. "As ações docentes, a didática, o pensar sobre o currículo, os métodos, os materiais, e as tecnologias, tudo isso decorre do que a gente pensa sobre esse tema", afirma.

 

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O que é conhecimento e sabedoria

"Fala-se muito que vivemos em uma sociedade do conhecimento. Eu discordo. Estamos em uma sociedade da informação", defende Machado. Para diferenciar os dois conceitos, o especialista se aprofundou na definição deles e de outros que também fazem parte do estudo da epistemologia.

Machado organizou esses conceitos no formato de pirâmide. Na base dela, estão os dados. "Não foi a tecnologia que criou o conceito de bancos de dados, eles sempre existiram", afirma. No século XVII, por exemplo, a França realizou um censo de suas árvores, sob o reinado de Luís XIV. O objetivo era analisar a capacidade que a nação teria de produzir embarcações. "Hoje, acumulamos muitos dados. Salvamos um arquivo no computador com um nome bobo e nunca mais encontramos", exemplifica.

A informação, nível superior ao dado, se diferencia dele por atribuir ao dado algum sentido. Para que dados se transformem em informação, é necessário que alguém se debruce sobre eles e apresente boas perguntas aos dados, a fim de atribuir significado a uma parte deles.

Na categoria seguinte está o conhecimento. "Se a informação é uma imagem, o conhecimento é um filme", afirma Machado. Trata-se, portanto, da integração de um conjunto de informações na construção de um sentido comum a todas elas. A sabedoria é o próximo estágio, em que acrescentamos a ideia valor. "A indústria farmacêutica acumula muito conhecimento, mas possui pouca sabedoria, no sentido de que só o utiliza em função de interesses comerciais", exemplifica o professor.

Um trecho de um poema do americano T. S. Elliot (1888-1965), ajuda a exemplificar a relação entre os conceitos. Ele afirma (em tradução livre): "Onde está a vida que nós perdemos vivendo? Onde está a sabedoria que nós perdemos no conhecimento? Onde está o conhecimento que nós perdemos na informação?". Machado brinca: "Não havia computador na época, mas eu vou completar: Onde está a informação que perdemos nos bancos de dados?" Em outras palavras: muitas vezes, desperdiçamos oportunidade de construir sabedoria, conhecimento porque gastamos muita energia ao tratar de dados e informações.

O conhecimento na hora de planejar

As imagens que professores possuem sobre como se dá a construção do conhecimento vêm à tona no momento em que eles elaboram seus planos de aula. "Elas são muitas vezes não são explícitas, são tácitas", afirma Machado. As figuras apresentadas pelo professor como preponderantes entre pensadores e educadores comparam o conhecimento a um balde, a um encadeamento, a uma rede e a um iceberg. "Quando eu planejo, quando eu avalio, tem uma imagem dessa comandando ou uma combinação de imagens", diz.

Pergunta da plateia

Qual o papel dos conhecimentos específicos das áreas no ensino e na formação de professores?

Ao pensar com foco em competências, como propõe a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), os saberes sobre a ciência, a matemática, as linguagens e as outras áreas abordadas na Educação Básica se tornam um dos meios para fazer com que elas sejam desenvolvidas. Essa nova relação diminui a importância deles. Nílson Machado cita a obra A Crise na Educação, de Hannah Arendt (1906-1975). Nela, a autora apresenta três causas para a crise. A mais conhecida é a quebra da autoridade docente, mas há outros dois elementos. A segunda diz respeito justamente ao desprestígio dos conteúdos na relação com as metodologias. "Na Faculdade de Educação da USP, por exemplo, há disciplinas sobre metodologia do ensino de matemática, mas não há uma única sobre Matemática", destaca Machado. A terceira é o desprestígio da teoria em relação à prática. "Sem a teoria, o fazer é cego", diz o palestrante. O caminho seria apostar em uma formação de desse algum espaço para todas as questões. "Não podemos dar ênfase exagerada a nenhuma das coisas", conclui Claudia Costin, Diretora Geral do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro e uma das palestrantes do dia.

A primeira imagem diz respeito a uma percepção do trabalho docente como o de "encher um balde", ou seja, apenas fornecer o conteúdo aos estudantes. Nesse contexto, o planejamento está ligado ao controle da vazão para preencher o objeto. "Eu sou professor de matemática e penso: vou dar três aulas para esta matéria, quatro aulas para esse pedaço, quatro aulas para aquele. Eu divido, loteio as aulas", exemplifica Machado. E a avaliação é a simples medição de quanto os alunos "acumularam" diante de tudo o que foi despejado sobre eles.

A segunda imagem está ligada ao pensamento do filósofo René Descartes (1596-1650) apresentada em seu livro Discurso sobre o Método. Para construir o conhecimento, é necessário partir de ideias claras e distintas. Objetos que não atendem a esses critérios precisam ser decompostos até partes claras e distintas. Então, segue-se um encadeamento lógico dessas noções. "O planejador cartesiano só precisa conjugar dois verbos: reclamar e prometer", brinca Machado. Segundo ele, é desse pensamento que surgem as reclamações de professores que não conseguem trabalhar o conteúdo de um ano porque os alunos não receberam o pré-requisito. E quando são questionados sobre o porquê de abordar algo, eles prometem: "lá na frente você vai ver porque isso é importante." "Essa imagem está longe de precisar ser jogada fora, mas é nítido que ela é insuficiente para se entender como se constrói o conhecimento", afirma o professor.

Visões contemporâneas: a rede e o iceberg

A ideia do conhecimento como rede e como iceberg são mais recentes. A primeira afirma que a construção dele se dá a todo o momento. "Quando um bebê aprende a falar, ele já começa a construir uma rede de significados", afirma Machado. Por isso, os pontos de "entrada" não são únicos, mas diversos, e é possível tecer relações entre diferentes conteúdos e conhecimentos, partindo de situações ligadas ao contexto vivido pelos estudantes, aos interesses deles, e assim por diante. "O problema é mais real: como enriquecer e desenvolver essa rede, aumentar o número de nós que a formam?", questiona.

A última imagem apresentada por Machado foi introduzida pelo filósofo Karl Polanyi (1886-1964). Segundo ele, o conhecimento pode ser visto como um iceberg, em que há uma pequena parte fora da água e uma porção muito maior imersa. A porção acima da superfície diz respeito aos saberes que podem ser demonstrados, colocados em palavra. A parte submersa são os conhecimentos tácitos que sustentam a parte que é explícita. "Na escola, muitas vezes, acontece um troca-troca de explícitos. Os processos de avaliação precisam estar mais atentos ao que não é possível de pôr em palavras", afirma o palestrante.

Não existe uma única imagem que seja capaz de dar uma explicação definitiva sobre o que é o conhecimento, mas ele é provavelmente uma combinação das diferentes imagens. "O dogmatismo de pensar que só existe uma forma de ensinar é algo terrível", conclui Machado.

O valor do que sabemos

Numa sociedade em que o número de postos de trabalho na indústria é cada vez menor, o conhecimento tem ganhado mais valor. Segundo os economistas, há três critérios que definem quão valioso é o que uma pessoa sabe: o quão abstrato, codificado e difundido esse saber é.

Conhecimentos concretos, segundo esse pensamento, são estritamente ligados a um contexto de uso específico. Já os abstratos estão ligados a capacidade de aplicá-los de maneira eficiente em diferentes situações. "Entendendo o abstrato nesse sentido, nós, educadores, não temos que brigar com os economistas. Quanto mais abstrato, melhor", afirma Machado.

Quem é Nílson José Machado

Leciona na Universidade de São Paulo desde 1972. Começou trabalhando no Instituto de Matemática e Estatística, e, em 1984, passou a integrar o corpo docente da Faculdade de Educação, onde é professor titular. Além de matemático, é mestre e doutor em filosofia da educação e livre-docente na área de epistemologia e didática. Escreveu cerca de duas dezenas de livros para crianças e publica microensaios semanais em seu site pessoal.

No segundo critério, os conhecimentos codificados têm relação com a capacidade de transcrevê-los em algum tipo de linguagem, qualquer que seja ela (verbal, matemática, e assim por diante). "Se eu domino um conhecimento abstrato, mas escrevo um livro para explicá-lo aos outros, ainda dá para extrair algum valor", diz o palestrante. Nesse caso, também não há conflito entre educadores e economistas: uma das funções da escola é justamente ensinar a codificar em diferentes linguagens.

O terceiro fator é o mais polêmico. Para economistas, os conhecimentos mais valiosos são aqueles que são menos difundidos, ou seja, que apenas um número pequeno de pessoas domina. Já os educadores defendem que os saberes sejam, de fato, difundidos o máximo possível. "Essa visão do conhecimento não nos serve na escola, não podemos achar que quanto mais ignorância melhor", conclui o professor.