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Como ficar doente se tornou expressão proibida no mundo moderno

por Sylvia Miguel - publicado 09/05/2017 12:05 - última modificação 10/05/2017 14:40

Pesquisador sabático buscará entender como a pressão por produtividade no trabalho tem levado o homem moderno a se privar do direito de adoecer
Frederico Azevedo da Costa Pinto

Frederico Azevedo da Costa Pinto, um dos pesquisadores sabáticos de 2017 no IEA

Tão natural quanto mostrar alegria e tristeza é a expressão de ficar doente. Dentre o vasto repertório de manifestações dos animais, o “comportamento doentio” – como é chamado entre especialistas – é a demonstração de desânimo, prostração, falta de apetite e vontade de não fazer nada. São sinais claros que os animais emitem quando não querem contato social pelo fato de estarem doentes. “É a forma de dar um tempo para o organismo se recuperar e até mesmo de preservar o grupo social de adoecer. Mas esse comportamento está cada vez mais reprimido nas sociedades modernas pela forma como a produtividade dos trabalhadores é encarada”, diz o professor Frederico Azevedo da Costa Pinto, especialista em patologia experimental e comportamento animal, integrante do Programa Ano Sabático do IEA em 2017.

Com o projeto de pesquisa "Homem Moderno: Um Animal Privado Socialmente do Direito de Adoecer", o patologista irá percorrer a evolução histórica de como eram vistos os comportamentos dos indivíduos doentes e como esse comportamento tem sido percebido nas sociedades modernas. Em paralelo, buscará na literatura relacionada, dados sobre a expressão desse comportamento entre seres humanos, relacionando-os ao comportamento de animais de experimentação.

A avaliação histórica permitirá confrontar mudanças na jornada de trabalho com as expectativas de produtividade do trabalhador moderno, acredita.

Se nas sociedades modernas adoecer vem se tornando proibitivo, o contraponto para “camuflar” doença é o uso cada vez mais corriqueiro de medicamentos. “Expressar o comportamento doentio incorreria em faltas no trabalho e, portanto, somos estimulados à medicação, muitas vezes à automedicação, com a finalidade de manter a jornada prevista de trabalho. Associado a isso está o fato de que as classes dos fármacos mais prescritos e consumidos nas sociedades modernas são justamente os medicamentos paliativos, para dores, resfriados e alergias, por exemplo”, afirma.

O projeto irá avaliar os investimentos em pesquisa e divulgação de fármacos voltados ao alívio momentâneo do mal estar de certas doenças. “São medicamentos que não encurtam, necessariamente, o curso da doença nem mesmo melhoram de fato as condições de saúde”, aponta Costa Pinto.

Sabático sintomas da gripe

“Não sejamos puristas. Tomar remédio ajuda a passar pela doença sem sofrer. Mas isso não impede que o indivíduo possa tomar o remédio e também ficar em conforto em casa. Na realidade, o que se busca discutir é o fato do indivíduo tomar remédio para se obrigar a continuar produtivo, trabalhando”, afirma.

Além disso, há o problema do excesso e da automedicação. Em certos países, a legislação permite que os medicamentos sejam ofertados em gôndolas, facilitando o acesso. Mas há sistemas de saúde, como no Canadá, por exemplo, onde não há excesso nem automedicação porque não há essa facilidade de acesso, compara.

Cultura e legislação

As diferenças culturais também influenciam a maneira como o doente se comporta. Até mesmo as legislações podem variar como reflexo do aspecto cultural, avalia o cientista. “Países com uma proteção social mais consistente permitem que as pessoas adoeçam, porque a legislação prevê licenças mais longas para doenças. Ou mesmo as licenças maternidade e paternidade mais longas denotam esse tipo de respeito ao trabalhador”, lembra.

Ao contrário, países que tendem a jornadas de trabalho cada vez mais longas e à terceirização submetem o trabalhador a pressões cada vez mais absurdas, suprimindo o direito do indivíduo de adoecer, avalia. “O direito de ficar doente tende a se tornar inaceitável nessas sociedades, pois atendem a uma lógica que torna os indivíduos dispensáveis”, avalia.

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Mas qual o problema em não se permitir expressar a doença? “Um deles, o mais óbvio, é levar a doença para o grupo social, no caso de um indivíduo que camufle uma doença infectocontagiosa, por exemplo”, diz.

Outro problema em não manifestar a doença é o individuo cada vez mais fica sujeito a doenças não curadas de fato e que podem ter recidivas ou se tornar crônica. “Estamos falando de doenças cotidianas, não graves. Não tenho dúvida de que não se permitir adoecer vai culminar numa recuperação pior ou incompleta, pois os medicamentos paliativos oferecem uma resposta momentânea para os sintomas da doença”, afirma.

Além disso, há alterações emocionais no longo prazo que parecem estar associadas ao fato da pessoa não parar quando precisa. “Não se dar esse tempo pode gerar transtornos, inclusive psicológicos”, afirma o patologista.

Todos esses aspectos culturais e mesmo legais denotam quanto cada sociedade se importa com a saúde dos seus cidadãos, acredita.

 

Semelhantes

Somos mais parecidos com os animais do que imaginamos. Coisas bizarras que assumíamos ser exclusividade de humanos têm cada vez mais sido observadas entre os bichos. “Por exemplo, a cópula não prevista, realizada simplesmente para demonstração de poder e superioridade hierárquica. A hierarquia é fundamental para entender o comportamento de adoecer. Um executivo de alto escalão e um porteiro demonstram de formas diferentes o adoecer”, compara.

O sistema imunológico tem muito a ver com a hierarquia, afirma o patologista. “Algumas pessoas não demonstram o comportamento doentio simplesmente porque são mais resistentes, ou porque a posição hierárquica numa empresa o impede. Ele pode não querer demonstrar vulnerabilidade. Outros não expressam o comportamento doentio porque não podem perder o emprego”, afirma.

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Cada vez mais as pesquisas mostram que as coisas que acontecem no sistema nervoso têm conexões físicas. Isso inclui a resposta imunológica, que é uma resposta protetora a infecções. A mesma resposta que prepara o corpo para uma resposta imediata, como por exemplo, fugir de um bandido, é também o tipo de resposta capaz de modular a imunidade, compara. “O famoso estresse, por exemplo, é uma resposta adaptativa protetora descrita há 80 anos e que funciona com esse mesmo mecanismo”, diz.

A subordinação e a resposta imune em animais têm sido estudadas para avaliar também como um animal “submisso” a outro se comporta diante da doença. Um modelo de pesquisa, que injetava bactérias para simular doença numa dupla de ratos, mostrou que as pressões do animal subordinado eram diferentes em relação ao dominante, conta. “Nesse caso, o dominante se permite demonstrar doença. Já o subordinado se presta a ficar dando atenção ao dominante e o tempo todo demonstra ser submisso socialmente, sem se ocupar de manifestar o comportamento doentio”, compara o cientista.

Os efeitos mais positivos esperados da sua pesquisa é que possa subsidiar políticas públicas, afirma o pesquisador. “Num país com problemas sociais, econômicos e políticos, é algo utópico que esses aspectos sobre saúde sejam considerados. Mas na prática, espero no mínimo poder levantar uma discussão sobre onde a sociedade industrial está empurrando o indivíduo. Não faz sentido ter uma economia crescendo em detrimento da perda de liberdade individual e da saúde do indivíduo. De fato, precisamos repensar a cultura do crescimento, da industrialização, do mercado de consumo, do lucro. Crescer é uma cobrança em todos os grupos sociais e em todos os níveis. Mas o que cresce sem parar é tumor, é câncer”, compara.

Imagens: Leonor Calasans; Mikael Häggström Polyethylen/Wikimedia Commons; Michael Katotomichelakis, Dimitrios G Balatsouras, Konstantinos Bassioukas, Nikolaos Kontogiannis, Konstantinos Simopoulos, Vassilios Danielides