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Físico explica a emergência e a diversidade da vida a partir da auto-organização

por Mauro Bellesa - publicado 04/07/2023 14:10 - última modificação 04/07/2023 14:13

O físico Bruno Coelho Cesar Mota, professor da UFRJ, foi o expositor no seminário Auto-Organização e Complexidade: Como Construir um Ser Vivo sem um Manual de Instruções, no dia 13 de junho, organizado pela Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade.

Bruno Coelho Cesar Mota
Bruno Coelho Cesar Mota: 'A complexidade da vida é emergente, não está definida no DNA'

Considerados como sistemas complexos, é possível dizer que os sistemas biológicos criam, a partir de uma simplicidade subjacente, estruturas complexas das quais emergem os fenômenos inerentes à vida e sua diversidade. Esse processo decorre de progressões em escala, de forma hierarquizada, de estruturas modulares cada vez maiores, condicionadas por parâmetros específicos e marcadas pela autossimilaridade.

Essa poderia ser uma síntese da abrangente exposição do físico Bruno Coelho Cesar Mota, professor da UFRJ, no seminário Auto-Organização e Complexidade: Como Construir um Ser Vivo sem um Manual de Instruções, no dia 13 de junho, organizado pela Cátedra Otavio Frias Filho de Estudos em Comunicação, Democracia e Diversidade, parceria do IEA com o jornal “Folha de S.Paulo.

O encontro teve coordenação e comentários da neurocientista Suzana Herculano-Houzel, professora da Universidade Vanderbilt, EUA, e titular da cátedra desde 13 de junho. A parceria entre ela e Mota já tem 17 anos, numa conjunção do interesse dela pela diversidade com o interesse dele por regras universais. "As duas coisas sempre estão presentes, com as leis da física sempre aplicáveis e a biologia apresentando propriedades emergentes", afirmou a pesquisadora.

Na abertura do encontro, Suzana, que diz não ser "fã" da ideia de seleção natural ("ganha-se muito mais pensando em possibilidades"), afirmou que a vida deve ser entendida simplesmente como “algo que funciona, que procura manter a ordem à custa de energia”, como um sistema complexo que funciona até o ponto de se autopropagar, aspectos que já tinha explorado sua conferência de posse na cátedra.

Ela considera que é preciso olhar para os níveis fundamentais da biologia e procurar entender que ordem surge a partir de uma auto-organização intrínseca aos constituintes materiais que tornam possível a emergência da vida. A partir disso, “pode-se utilizar esses conceitos para entender a formação da vida até os sistemas complexos da vida moderna”, disse.

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Sistemas Complexos

É essa justamente essa uma das preocupações de Mota, que trabalha com a física aplicada à emergência dos sistemas complexos, os biológicos em particular. A ideia é de que esses sistemas são capazes de criar – sem componentes externos – organizações complexas, das quais resultam fenômenos, estruturas, mecanismos e trajetórias emergentes a partir da uma simplicidade subjacente.

Depois de defender sua tese de doutorado sobre a topologia do Universo no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas em 2007, Mota resolveu estudar neurociência para verificar de que maneira conceitos da física podem ser estendidos à biologia. Atualmente ele dirige o Laboratório de Matemática Experimental e Biologia Teórica (metaBIO) na UFRJ.

Em sua conferência, Mota primeiro tratou do que caracteriza os seres vivos e os diferencia de outros sistemas e qual mecanismo pode criá-los. Afirmou que o ser humano é um conjunto de aproximadamente 10 bilhões de bilhões de bilhões (1028) átomos reunidos de uma forma específica, por isso difere de um monte de areia: "Pode-se mudar porções da poeira de lugar e ela continuará a mesma poeira reunida num monte.”

No ser humano, disse, é possível mudar algumas células de lugar e tudo permanecer praticamente igual, “mas mudar as células que constituem um órgão como o estômago pode ter consequências drásticas”, afirmou. A diferença fundamental entre seres vivos e coisas inanimadas é que os seres vivos têm átomos altamente ordenados em arranjos muito específicos e baixa entropia, reforçou.

Papel do DNA

O manual de instruções é o DNA, constituído de 5 bilhões de pares de nucleotídeos (adenina + timina e citosina + guanina). A sequência desses pares vai identificar um DNA específico. No entanto, ele não é um manual de instruções, comentou Mota. “O DNA é importante para definir como o ser vivo vai ser, mas não é um manual com uma série de instruções que permita criar um ser vivo. O que faz isso é um conjunto de mecanismos que interagem sob orientação das proteínas codificadas pelo DNA”, afirmou.

“Mas se não há manual de instruções, como é possível que os seres humanos surjam? Ninguém sabe a resposta. Meu arremedo de resposta é que a complexidade da vida é emergente, não está definida no DNA”, disse.

No caso do cérebro, os neurônios produzem pulsos eletroquímicos, que resultam nas sinapses (conexões entre neurônios). “É dessa forma que os neurônios se organizam em rede de células que não são necessariamente vizinhas e que podem mudar nosso estado em relação ao ambiente externo.”

De acordo com os dados apresentados por Mota, cada neurônio humano tem de 4 a 100 μm [cada micrômetro equivale a 1 milésimo de milímetro] de diâmetro e efetua 10 mil sinapses, em média. Como o córtex cerebral tem cerca de 18 bilhões de neurônios, o total de sinapses possível é de aproximadamente 180 trilhões. O enorme número de configurações possíveis entre neurônios e sinapses representam um total de 10 quatrilhões de bites de informação, segundo o pesquisador.

Para efeito de comparação, ele comentou que o mais recente chip da Apple, o M1, possui 57 bilhões de transistores com 3 a 100 conexões cada um ("não é possível conectá-los de forma aleatória como acontece entre os neurônios").

Escala

Segundo Mota, não é possível construir seres vivos com a tecnologia de construção de chips, pois ela só funciona na construção de chips. Ele fez uma analogia com a produção de carros: “A arquitetura que projeta carros só funciona para a construção de carros em escala de alguns metros. Se o carro for pequeno demais, a gasolina pode não chegar ao motor; se for muito grande, a estrutura fica frágil e pode rachar com o próprio peso”.

No caso dos seres vivos a questão é diferente. “Uma baleia azul chega a 150 toneladas e o musaranho-pigmeu adulto pesa 2 gr. Apesar da diferença de tamanho, números de células e número de neurônios, as células são do mesmo tipo e formam órgãos organizados de forma específica”, disse.

Auto-organização

Mas como é possível que haja auto-organização biológica? Mota exemplificou com um modelo hipotético semelhante a um jogo de tabuleiro, no qual em cada casa pode haver ou não uma bactéria, que podem se reproduzir, morrer ou não fazer nada. “O que vai acontecer com uma bactéria vai depender do que está próximo dela, e haverá regras sobre quantos vizinhos próximos ela precisa ter para viver ou morrer. Com o desenrolar do jogo, parte delas se auto-organizam e parte desaparece. Surge um padrão à medida que os ‘jogo’ transcorre."

Voltando à situação do monte de areia, com o acréscimo de mais areia, chega uma hora que ele começa a desmoronar. “Para qualquer configuração inicial da pilha de areia, ela converge para um estado crítico, com avalanche.”

“Num cérebro, a avalanche é quando um neurônio dispara e aciona aqueles aos quais está conectado. Pode-se medir a atividade elétrica resultante dos disparos no cérebro.” De acordo coma, a partir de estados amorfos iniciais, são produzidos estados organizados, críticos e, o mais importante, persistentes. “Quando há uma avalanche crítica demais, num surto epiléptico, por exemplo, são acionados todos os neurônios ao mesmo tempo. Num estado subcrítico, a perturbação se extingue, sem se propagar para o resto do cérebro.”

Criar permanência a partir da criticalidade é um mecanismo para o senso do eu continuar existindo no futuro como existia no passado, segundo o físico. “Sistemas dinâmicos que não possuem essa propriedade rapidamente ‘se esquecem’ do estado anterior”, disse.

Mas como a vida consegue criar formas tão complexas? "Os seres aprendem a fazer formas simples e as repetindo em várias escalas. Outra característica é a autossimilaridade das formas emergentes, como ocorre nos fractais", afirmou.

Mota resumiu assim todo o processo: padrões complexos e persistentes emergem a partir de mecanismos locais simples; as estruturas se auto-organizam para manter correlações de longo prazo; as formas resultantes são autossimilares.

Módulos e regras

Para Suzana, os aspectos levantados na conferência por Mota podem ser resumidos em duas condições fundamentais autoemegentes: a existência de módulos repetitivos (átomos, árvore, pessoas etc.) e a presença de condicionantes, regras.

Mota considerou que os módulos são importantes, mas precisam ser hierárquicos e em várias escalas. As restrições também são fundamentais em função da dinâmica do processo, “permitindo diferenciar um ser humano de um hipopótamo, por exemplo”.

A neurocientista Suzana Herculano-Houzel
Suzana Herculano-Houzel: ''A construção da hierarquia entre módulos é o que chamamos de emergência''

Suzana sugeriu que talvez a hierarquia surja a partir da interação condicionada por regras entre módulos. Para ela, “a construção dessa hierarquia é o que chamamos de emergência”. Mota reforçou que, além dessa construção hierárquica, com módulos em escala maior a partir da interação entre outros em escala menor, há também o processo de autossimilaridade em escalas crescentes.

Além de debaterem entre si, Mota e Suzana também responderam a questões levantadas por pesquisadores que vinculados ao projeto dela como titular da cátedra. Uma das perguntas foi sobre como a coexistência e a hierarquia podem ser definidas na ampla diversidade neurológica do ser humano.

Hierarquia

Mota explicou que a hierarquia permite passar do exame simples dos mecanismos para exames mais complexos. Além disso, afirmou, a hierarquia preserva a simplicidade. “Se o córtex humano fosse construído para conectar um neurônio com outro num mapa bem específico, isso seria muito frágil: pequenas mudanças fariam o sistema parar de forma totalmente. Mas quando temos mecanismos simples, que são mais robustos, e os escalamos de forma hierárquica, criam-se outros mecanismos simples e robustos”, disse.

Em relação aos vínculos entre complexidade e diversidade, ele disse destacou que quanto mais níveis mais chances de comportamentos emergentes: “A diversidade de formas de pensar surge como diversidade emergente dos vários níveis hierárquicos. Quando se tem 18 bilhões de neurônios no córtex, chega-se a comportamentos altamente individualizados, altamente dependentes da história e altamente emergentes”.

Suzana disse que no mundo real existem dois tipos de ordem, a fabricada e a emergente, e entre elas está o cérebro humano. “Quanto mais unidades, mais possibilidades, mais níveis hierárquicos. Com isso o cérebro ganha possibilidades de complexidade, até chegar ao ponto onde podemos representar não só nossa própria realidade, mas também valores e possibilidades futuras, desejadas ou não”, comentou. Para ela, quando há valores e desejos, nasce a possibilidade de fabricar a ordem, que “é talvez mais um nível de hierarquia emergente desse todo”.

Suzana perguntou a Mota se ele já pensou em expressar em termos de bits a experiencia, interações que o ser humano tem ao longo da vida. Para exemplificar a dificuldade para essa empreitada, ele explicou que apenas os olhos enviam 1 GB por segundo de informações ao tálamo, que envia 10% disso para o córtex visual. "Se contabilizarmos a quantidade de informação que um ser humano recebe ao longo da vida, o número de bites será muitas vezes maior do que a quantidade de informação presente no código genético", comentou.

Filtragem

Ele explicou que tão importante quanto a quantidade de informação que incorporamos é a quantidade do que é filtrado, esquecido. “A maneira como incorporamos informação nova é moldada pela informação velha. Temos um ciclo, um looping no qual o que gravamos e lembramos é moldado pelas nossas expectativas antigas. O resultado é que a expectativa e o observado nos motiva tanto a ignorar informação nova quanto mudar nosso estado mental”, disse.

Outra questão apresentada aos dois foi se os conceitos que adotam estão relacionados com a teoria da autopoiese, dos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, na qual só a vida pode produzir vida, ou se superam essa formulação.

Mota respondeu que só se conhece vida que veio da vida, mas postula-se que a vida tem uma origem pré-biótica. "Talvez a fronteira não seja tão delimitada entre um nível de não vida e uma vida bem simplificada", disse.

"Talvez a transição do pré-biótico para o biótico tenha sido mais natural, ao ocorrer num ambiente mais favorável do que aquele que um organismo encontra hoje", afirmou.

Ele comentou que há teorias de como se criam estruturas biológicas a partir de certas regras universais. “O interessante é que algumas estruturas humanas são auto-organizadas a partir de certas estruturas universais”, acrescentou.

Segundo Suzana, já se sabe que a sopa pré-biótica não era algo desorganizado, sem nenhum tipo de condicionante, “e a complexidade emerge espontaneamente quando há módulos e restrições”, relembrou. "A hipótese atual é que a própria ideia de célula (que por si já impõe uma limitação física com sua membrana) era de algo inorgânico, com um involucro composto de pequenas bolhas de ferro criadas pelos fluxos de gases gerados pelo magma embaixo da crosta do fundo do oceano", comentou.

Mota disse que a vida é um sistema em desequilíbrio com o ambiente, mas quando se pensa na sopa pré-biótica considera-se que ela era um sistema em equilíbrio térmico-químico com o ambiente: “De alguma forma, estruturas desequilibradas surgiram.

Ignorância

Indagado sobre como via a procura pela recriação da função biológica da mente na forma de algoritmos, dada a complexidade do cérebro humano, Mota comentou que muitas das grandes descobertas da ciência do século 20 tratam da ignorância irredutível sobre algum aspecto da natureza. Ele citou três exemplos disso na física: o Princípio da Incerteza de Heisenberg [estabelece limites fundamentais que impedem medir com precisão certas propriedades de uma partícula subatômica]; o horizonte de evento dos buracos negros, que não permitem investigar o interior destes; e o caos que dificulta a previsibilidade de sistemas dinâmicos determinísticos.

Nesse sentido, afirmou, talvez haja um tipo de ignorância inevitável na complexidade, pois, “se um sistema complexo, como uma rede neural, começa a fazer conexões com seus pares para produzir, devido à emergência, um novo nível de complexidade, não se consegue prever as estruturas de nível superior a partir de seus níveis fundamentais”. Segundo Mota, esse é o caso da inteligência artificial (IA), com seus sistemas colocados em rede e interagindo entre si.

Quanto ao desenvolvimento da IA em si, Mota comentou que problemas novos suscitam ideias e técnicas para resolvê-los que são tão interessantes quanto a própria resolução: “Newton inventou o cálculo para lidar com a mecânica clássica, mas o cálculo é tão profundo quando ela. As redes neurais são inspiradas nas redes biológicas de neurônicos, mas são outra coisa, tão interessantes quando os sistemas biológicos.”

Para ele, a criação de inteligência similar à humana não será resultado "apenas do empilhamento de mais e mais camadas de convoluções de redes neurais”. Essa criação “vai depender de ideias fundamentais, talvez inspiradas pela cognição humana, de pensamentos que advenham de entendimentos mais globais da cognição, ideias que não tivemos ainda e tão interessantes quanto sua finalidade".

Essa imprevisibilidade quanto ao futuro da IA “é algo importante sobre o qual temos de admitir com humildade nosso desconhecimento”, disse Suzana.  Ela acredita que entender como a complexidade emerge “dá ferramentas para começar a vislumbrar o que pode ser possível em termos de complexidade emergente na IA”.

A IA ensinou, segundo Suzana, que “a linguagem não é essa coisa maravilhosa e tão completamente extraordinária que se pensou por tanto tempo. Basta um sistema capaz de auto-organização, o acesso a um corpo de limitações, regras, e tempo e energia suficientes e consegue-se treinar um algoritmo”.

Para ela, o salto na IA aconteceu quando os cientistas – neurocientistas em particular – “pararam de tentar entender como o cérebro humano funciona, como se constrói um sistema que aprende etc. e simplesmente ‘chutaram o balde’ e disseram: ‘Vamos fazer uma coisa simples e deixar o sistema se auto-organizar’”.

Comunicação

Em outra pergunta, na qual a pesquisadora chamou a emergência de um “mecanismo criacionista no qual as coisas se adaptam, persistem e fecundam numa relação dialética e dialógica", Mota e Suzana foram indagados se a comunicação intensa entre as partes não seria o manual de criação do ser.

Mota respondeu que é preciso considerar que há a informação extracerebral e a intracerebral. Além disso, disse que é preciso considerar dois aspectos em qualquer transmissão de informação: deve se dar de forma sintética e o código não deve ser ambíguo. “No cérebro, o processo de comunicação entre diferentes partes é semelhante. A questão é que ainda não interpretamos o código, temos uma ideia vaga sobre ele.”

Suzana interpretou a questão sobre o papel da comunicação como manual de instruções do ser a partir de outro enfoque, não apenas do ponto de vista cerebral, mas sobretudo entre o aspecto biológico do ser e o ambiente. Para ela, a maior parte da informação que define um cérebro, um indivíduo, vem do ambiente, da interação do organismo com seu entorno.

“As informações que definem um indivíduo vêm do conjunto de interações de sua biologia e o mundo, que por sua vez são resultado das ações do indivíduo no mundo e de sua capacidade de registrar a consequência dessas ações por meio dos sentidos”, afirmou Suzana.

Fotos (a partir do alto): UFRJ; vídeo de Suzana Herculano-Houzel