A troca simbólica entre artistas e grupos sociais em situação de vulnerabilidade
Os momentos em que a arte se torna um processo de envolvimento entre o projeto do artista e segmentos da sociedade marginalizados, fragilizados ou oprimidos foi o tema do 9º encontro da Jornada Relações do Conhecimento entre Arte e Ciência: Gênero, Neocolonialismo e Espaço Sideral, no dia 26 de setembro.
Ao compartilhar os direitos e frutos da obra com as pessoas envolvidas, o artista reconhece a “subjetividade autoral e a condição de sujeito econômico da arte”, segundo os organizadores da jornada, Helena Nader e Paulo Herkenhoff, titulares da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência.
Chamado Diagramas de Alteridade, o encontro teve a participação do fotógrafo Alexandre Sequeira, professor da UFPa, do psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia (IP) da USP; do escultor e arte-educador Eduardo Frota; do videoartista Maurício Dias, do duo Dias & Riedweg (com Mauricio Riedweg); da artista visual Paula Trope; e da também artista visual Rosana Palazyan. A moderação foi dos dois titulares da cátedra.
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Autoestima
Em 1992, Rosana Palazyan começou a trabalhar com a violência, tendo por objetivo ampliar sua produção para a realidade do tecido social. "Isso me permitiu o encontro com o outro e trilhar caminhos que nunca teria conhecido sem a arte."
De 2000 e 2002, atuou voluntariamente com adolescentes internados na Escola João Luiz Alves, na Ilha do Governador, na cidade do Rio de Janeiro. “Nos primeiros meses, os adolescentes não entendiam bem o que eu fazia lá e não foi fácil. A sorte foi contar com um diretor com reais intenções de mudança.”
Cinco obras foram surgindo nesse período. Uma delas relacionada com o fascínio dos adolescentes por roupas de marcas famosas.
Ela colocou à disposição dos jovens papel e giz de cera e todos resolveram experimentar desenhar. O resultado foi uma coleção enorme de desenhos, que foram impressos em camisetas. "Suas histórias poderiam ser as suas roupas de marca, roupas com que sairiam da instituição. Poderiam produzi-las e vendê-las."
As camisetas foram apresentadas na Babilônia Feira Hype em 2002. “Ao verem jovens da Zona Sul comprarem as peças com seus desenhos, tiveram sua autoestima aumentada e a Roupa de Marca virou moda", disse a artista. O resultado das vendas foi revertido para o que os adolescentes queriam que a instituição tivesse. As duas primeiras compras foram um aparelho de televisão e uma câmera de vídeo.
Eduardo Frota chegou ao Rio de Janeiro aos 19 anos em 1978. Dez dias depois de chegar, a dona da pensão onde se hospedara o levou à Escolinha de Arte do Brasil (EAB), cuja diretora lhe concedeu uma bolsa para estudar arte-educação por dois anos. Em seguida, estudou no Museu de Arte Moderna (MAM), na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e nas Faculdade Integradas Bennett.
Na EAB, Frota interessou-se pela arte das crianças e dos esquizofrênicos - “duas coisas que estão à margem da produção capitalista’ -, num processo que o levou a se tornar educador e artista.
Depois de 14 anos no Rio, decidiu voltar a Fortaleza, onde instalou um ateliê na periferia e empregou jovens do local. Os rapazes se envolveram "em todos os processos do fazer artístico: intelectuais, físicos e técnicos".
“Nessa prática, as histórias e particularidades de cada um eram importantes e ampliadas para o processo coletivo. Uma coisa habitual era a interrupção da produção por 30 minutos ou mais para discussão de questões de interesse coletivo.”
Frota também convidava professores da Universidade Federal do Ceará (UFC) para discutir com o grupo questões de filosofia, sociologia, história e outros temas. O ambiente cultural era complementado por uma biblioteca e exibição de filmes.
“Toda essa experiência estava longe de ensinar apenas a instrução funcional na produção das esculturas de madeira ou de possibilitar formação profissional aos jovens. Isso não me diz quase nada. O objetivo era uma formação educativa para o desenvolvimento das faculdades humanas além do saber instrumental.”
Resistência
Paula Trope formou-se em cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e tornou-se mestre pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Atualmente é doutoranda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Disse que nos anos 70 frequentou muito o MAM, visitando exposições e participando de oficinas de expressão corporal e pintura e de cursos de cinema.
Segundo ela, essas experiências no MAM possibilitaram “perceber a arte como resistência e transformação”. Somou-se a isso o interesse em problematizar a questão do poder no campo social.
Ela tratou de alguns de seus trabalhos, entre os quais “Os Meninos” (1993/4), no qual crianças e adolescentes moradores de rua se deixavam fotografar e fotografavam algo que fosse objeto de seu desejo.
Também falou do projeto “Morrinho” (2004/5), no qual fotografou os jovens e suas obras, os “morrinhos” (maquetes de favelas), da série de vídeos “Contos de Passagem” (2000/1) e do trabalho na Polônia relacionado com seus ancestrais.
Identidade
O fotógrafo Alexandre Sequeira, professor da Universidade Federal do Pará (UFPa), discorreu sobre o trabalho que realizou em 2004/5 em Nazaré do Mocajuba, vila de pescadores no nordeste do Pará, com uma bolsa de pesquisa.
“Eu estava muito encantado pela geografia do lugar, até que aconteceu algo: uma senhora me pediu para tirar uma fotografia dela, para um documento. Fiz uma foto 3X4 e entreguei a ela, e aí todo mundo começou a me chamar para fotografar por algum motivo: um documento, um avô que estava para morrer, um casal que queria ter uma foto juntos. Passei dois anos atendendo às solicitações de todos na vila como retratista. Muitos nunca tinham se visto numa fotografia.”
Com esse contato, Sequeira começou a se tornar mais íntimo dos moradores e de seus objetos. Reparou que as estampas e tramas dos panos que usavam em cortinas, redes, mosquiteiros e toalhas de mesas de alguma forma refletiam a personalidade de seus proprietários. Foi a Belém e comprou tecidos similares e os trocou com os tecidos dos moradores. Nestes, imprimiu fotografias em alto contraste de seus proprietários em tamanho natural e os devolveu a eles.
Os tecidos foram expostos em Belém, no Rio de Janeiro e na própria vila. No final do ano, estarão na Bienal de Taiwan. "As imagens despertaram interesse de colecionadores e museus. O dinheiro arrecadado com as vendas foi destinado aos moradores, para que decidissem como utilizá-lo."
Solidariedade
O psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psiquiatria (IP) da USP, afirmou que nas imagens feitas por Sequeira se encontra algo próximo do início da fotografia, no século 19, com pessoas muito sérias, “como a olhar algo que introduz um regime de permanência”. Para ele, os trabalhos apresentados pelos quatro artistas no seminário dão suporte à ideia de Paulo Herkenhoff de uma "práxis ética da solidariedade”.
A práxis não é só o prático, mas um tipo de saber, afirmou Dunker. "Práxicos não dissociam o agente do outro e os meios dos fins. Não podem agir de forma antiética se seus fins são éticos."
Para ele, a solidariedade restrita aos que se julgam iguais não serve mais, pois "propaga o trauma e a segregação". O momento é de "convocar a arte, a psicanálise e a política para a criação de um conceito de solidariedade imanente".
O conceito de identidade ideal para nós é o da família, na opinião de Dunker. "É isso que temos no poder agora. A família é incorporada e passa a dominar o espaço público. Isso gera uma política de Estado baseada numa solidariedade do tipo teológica. Como inventar outro tipo de solidariedade? É preciso recuperar quais são as figuras dos outros, do animal, do estrangeiro, do morto."
"E se no começo estiver o estrangeiro, o outro, o despossuído, aquilo que dissolve nossa identidade. Se se parte de uma premissa dessas, poderíamos pensar em processos de solidariedade imanente."
Dunker discutiu também a alteridade a partir de trabalhos do artista chileno Alfredo Jaar. Num deles, ao ser convidado pelo governo da Finlândia para uma intervenção solidária, Jaar solicitou à Casa da Moeda do país a impressão de um milhão de passaportes, correspondentes à cota de imigrantes que o país deveria receber, de acordo com a União Europeia.
“Na instalação, os passaportes ficavam atrás de um vidro. Até que uma pessoa jogou seu própria passaporte na instalação. Outras pessoas fizeram isso e assim ampliou-se o escopo da instalação.”
Isso gerou um problema estético e ético, pois o combinado era que os passaportes sem dono seriam queimados no fim da exposição. “Mas o que fazer com os passaportes reais? Jaar teve um ato muito interessante, 'raptou' um certo número de passaportes e queimou o restante.”
Na opinião de Dunker, os trabalhos comentados pelos artistas do encontro também funcionaram como “um start point para algo que superou o que tinha sido feito”.
Alteridade
Paulo Herkenhoff tratou da responsabilidade social pelos intelectuais e disse observar na arte brasileira esse empenho na relação com o outro, com os despossuídos socialmente. Citou como paradigmas de diagrama de alteridade os trabalhos dos dois homenageados pelo encontro: o escultor e designer Geraldo de Barros (1923-1998) e a fotógrafa Claudia Andujar, 88 anos.
Artista múltiplo que explorou a pintura, a fotografia e as artes gráficas, Barros foi lembrado pela empresa de fabricação de móveis Unilabor, criada por ele em parceria com um padre dominicano em 1954. Organizada como uma comunidade com socialização dos lucros, a empresa foi até 1961 uma referência do design de móveis na cidade de São Paulo. Barros projetou os móveis baseando-se em suas referências construtivas relacionadas com a arte concreta.
Andujar atua desde o final da década de 60 na defesa do povo Yanomami, utilizando a arte como instrumento de denúncia do genocídio da etnia e de esclarecimento dos valores humanos e culturais desses indígenas. Ela compartilhou os resultados econômicos de seu trabalho fotográfico e tornou os Yanomami herdeiros dos direitos de imagem.
Encontros simbólicos
O diagrama de alteridade na arte se distingue das ideias de engenharia social, serviço social, segundo Herkenhoff. “É uma instância de ativação de encontros simbólicos”. Mas é preciso reconhecer o direito autoral e o direito financeiros dos envolvidos, afirmou. “Fora isso, será exploração capitalista”.
Para Dias, a alteridade é um lugar de conflito, por isso alerta que é preciso tomar cuidado sobre as restrições a quem pode ocupar um “lugar de fala, que pode se tornar um lugar de cala”. Disse não conhecer um artista que não trabalha com a alteridade.
O que move os artistas brasileiros é uma grande solidão, necessidade do outro, afirmou Dias. Isso se deve "não só ao que vivemos no Brasil, mas também ao capitalismo exacerbado que vivemos no dia a dial". No entanto, "o trabalho do criador não é um antidoto, mas uma resistência".
Foto: Leonor Calasans/IEAUSP