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Os desafios da diversidade e da recepção ao imigrante

por Sylvia Miguel - publicado 03/12/2015 13:30 - última modificação 03/12/2015 15:13

As múltiplas nacionalidades que compõem o povo brasileiro, as agruras psíquicas do migrante involuntário, a síndrome do regresso, as dificuldades da língua e de subsistência foram temas de encontro no IEA.

“As pessoas moralmente maduras são aqueles seres humanos que cresceram a ponto de precisar do desconhecido, de se sentirem incompletos sem certa anarquia em suas vidas; que aprenderam a amar a alteridade”. A abordagem multiculturalista do antropólogo social Gerd Baumann (1953-2014) foi lembrada pela professora Sylvia Duarte Dantas (Unifesp), na abertura do simpósio Refúgio, Retorno, E/Imigrações: Línguas, Identidades, Saúde Mental, Crenças, Território, realizado no dia 27 de novembro na antiga sala do Conselho Universitário da USP.

Operação Tritão resgata refugiados no Mediterrâneo
Operação Tritão, comandada pela Frontex, a agência da União Europeia para a gestão de fronteiras, resgata refugiados no Mar Mediterrâneo, em junho de 2015.

Organizado pelo Grupo de Pesquisa Diálogos Interculturais do IEA, coordenado por Dantas, o encontro expôs algumas das pesquisas realizadas pelo grupo, voltado aos estudos dos deslocamentos, migrações e interculturalidade.

“O contado com o diferente gera estranhamento. Se esse estranhamento for utilizado para interesses espúrios, ou interesses que não propiciam o real desenvolvimento da humanidade, isso é algo que precisamos pensar e criar espaços de reflexão capazes de atuar sobre os perigos que essa realidade nos traz”, lembrou Dantas.

O simpósio também marcou o lançamento do livro do professor visitante do IEA Jeffrey Lesser, “A invenção da brasilidade”. A obra foi editada originalmente em 2013 pela Cambridge University Press, com o título Immigration, Ethnicity and National Identity in Brazil.

Lesser abriu os debates com a palestra "A Invenção da Brasilidade: Identidade Nacional, Etnicidade e Políticas de Imigração". As muitas facetas do multiculturalismo brasileiro, as formas de convivência com o diverso e de assimilação cultural, a recepção ao estrangeiro, bem como os preconceitos etno-raciais que permeiam a própria cultura do Brasil foram algumas linhas analisadas pelo historiador.

Brasilianista e auto-declarado discípulo do historiador norte-americano Warren Dean, Lesser lembrou que o passado do Brasil ainda tem fortes ecos no presente. Para ele, a relação entre “estrangeridade” e “brasilidade” era tão atual no século 19 quanto é no século 21. Pinçou alguns exemplos curiosos extraídos de fatos recentes mostrados pela mídia e de registros históricos, mostrando como o passado cultural está atrelado ao comportamento cotidiano de hoje.

Capa do livro "A invenção da brasilidade"
Capa do livro do professor Jeffrey Lesser.

“Numa página do Orkut, um brasileiro reclamava de ser chamado de japonês. Há no país uma situação curiosa de cidadãos de uma nação versus estrangeiros morando numa nação”, disse Lesser, ao exemplificar como descendentes de imigrantes ainda são categorizados como estrangeiros fora da experiência nacional.

Por outro lado, há também o imigrante que insiste na brasilidade. “Falamos português porque somos japoneses”, disse Lesser ao citar a fala de um descendente japonês.

Muitas situações que expôs na palestra estão compiladas no seu livro, fruto de uma pesquisa histórica e etnográfica de fôlego que provoca indagações sobre como a brasilidade tem sido construída.

O debate acadêmico do livro adota uma narrativa que torna o assunto acessível a diversos públicos, buscando mais as semelhanças que as diferenças entre os diferentes grupos sociais e raciais. O Brasil não é apresentado de uma forma tão singular a ponto de ser incomparável e assim, o autor identifica “padrões que se repetem por todas as Américas”.

Na sequência, a mesa redonda Territórios e Crenças contou com as exposições da professora Maura Pardini Bicudo Véras, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, e do professor Koichi Mori, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A professora Véras fez uma análise sobre a ocupação da cidade de São Paulo e as definições de território e identidade calcadas nas diferentes etnias e raças que ocuparam a metrópole. Mori apresentou os resultados de sua pesquisa recente sobre religião e espiritualidade, com o tema “Umbanda e Xamanismo Okinawano: Um novo Encontro Intercultural”.

Nos intervalos do simpósio, foram apresentados vídeos produzidos pelo coletivo cultural Visto Permanente, um projeto que disponibiliza um acervo online de produções audiovisuais sobre a arte e a cultura de comunidades transnacionais de São Paulo.

O grupo faz exibições de suas produções em praças e eventos públicos, no intuito de divulgar a diversidade cultural da capital paulista. O projeto busca “reivindicar a pertença do Imigrante a São Paulo e defender que quem vive e trabalha na cidade tem direito a ela”, conforme texto de apresentação na página web do grupo.

O objeto ameaçador

Refugiados haitianos no Acre
Imigrantes haitianos abrigados em alojamento improvisado em Brasileia, no Acre.

Lucienne Martins Borges, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (RS) e da Universidade Laval, do Canadá, pontuou as diferenças entre o migrante voluntário e o migrante involuntário, mostrando sua experiência no atendimento psicológico de migrantes no Canadá.

Por temores alheios à sua vontade, o migrante involuntário foge de uma situação real ou de um sofrimento psíquico imposto, disse. “Nas migrações involuntárias, as pessoas estão em busca de vida e ponto, não de uma vida melhor. A maioria delas não sonhou estar no local do seu deslocamento. Apenas sonharam estar em um lugar que, de preferência, seria o seu. O movimento que define seu deslocamento é a repulsa pelo que ele é ou significa. Isso nada tem a ver com projeto de vida, é a marca de uma migração involuntária”, compara.

Borges integrou a mesa Migração e Saúde Mental ao lado da professora Dantas, que na sua palestra sobre Retorno, Remigração e Saúde Mental, abordou os resultados de suas pesquisas qualitativas com migrantes que retornaram ao Brasil depois de terem escolhido outra pátria para viver.  Os estudos focaram famílias e grupos de migrantes retornados dos Estados Unidos e do Japão.

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Em meados dos anos de 1980, os dados oficiais do Brasil evidenciaram um fato inédito, de que o país não era apenas um receptor de migrantes. Em 2008, a estimativa oficial dava conta de que cerca de três milhões de brasileiros viviam em 117 países. “Passamos a olhar para o país como um exportador de pessoas”, lembrou.

As crises econômicas que levaram os brasileiros a emigrar também foram o motivo do retorno ao país. “O número de retornados ao Brasil após a crise internacional de 2008 aumentou muito”, disse Dantas. No Censo de 2010 havia mais de 455 mil migrantes retornados, mostrou.

A síndrome do regresso é estudada no contexto de pessoas que retornam ao seu país de origem, disse. Estudos de 1980 já apontaram que as condições econômicas negativas impulsionaram o retorno, mas também o aspecto emocional de estar junto com as familias e amigos. “Isso em nossos atendimentos todos os brasileiros falam. Voltam inclusive para ter seus filhos aqui”, disse Dantas.

Os dados apontam um custo psíquico do retorno maior do que o da partida, disse. “O choque do retorno é grande. Quando as pessoas pensam estar voltando a um lugar familiar, acabam por se sentir estrangeiras na própria terra”, gerando quadros de depressão, estresse, ansiedade e desorientação, apontou.

Questões da língua

No dia 11 de novembro, o Ministério da Justiça concedeu visto de permanência a todos os haitianos que chegaram ao Brasil desde 2010, quando um terremoto matou 230 mil haitianos num terremoto. Segundo informações do Portal Brasil, os imigrantes terão direito à carteira de identidade de estrangeiro para acessar o mercado formal de trabalho e os serviços públicos.

Estimativas oficiais contabilizam 56 mil haitianos vivendo no Brasil desde 2010. A busca por segurança em território brasileiro vem se repetindo com dezenas de outras nacionalidades: congoleses, nigerianos, ganenses, togoleses, sul-africanos, camaroneses, colombianos, peruanos, equatorianos, bolivianos, paquistaneses, bengalis, egípcios, iraquianos, palestinos, sírios, turcos e outros.

A necessidade de trabalho da população imigrante suscita a necessidade de aprendizado de português, lembrou a professora Rosane de Sá Amado, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

A docente participou da mesa Refúgio no Brasil - Experiências de Acolhimento Linguístico, em que também debateram as professoras Ligia Fonseca Ferreira, da UNIFESP, e Adriana Capuano da Universidade Federal do ABC.

Amado, que está ligada à Missão Paz e ao Oásis Solidário, dois movimentos voluntários de ensino de português para estrangeiros, disse que a cidade de São Paulo possui atualmente 20 cursos para imigrantes e refugiados, oferecidos por organizações não-governamentais, associações e igrejas. Mas isso não é suficiente e faltam professores com as competências adequadas para acolher tanta variedade, disse.

“A demanda pelo aprendizado da língua é muito grande. Numa sala de aula, encontramos pessoas das mais diversas nacionalidades, falantes de muitas línguas e não só a de seus países de origem. Há mutas pessoas que se voluntariam a esse trabalho e isso é bom. Mas o ideal é que pessoas especializadas estivessem no ensino de português para estrangeiros, ou mesmo profissionais bilíngues”, disse.

Aulas de português para imigrantes
Imigrantes têm acesso a aulas de português em cursos oferecidos por ONGs, associações e igrejas.

Segundo Amado, aprender o português é uma urgência não só pelo sustento. “Muitos querem aperfeiçoar o português para poder continuar os estudos”. Para a docente, isso atesta a importância da língua como acolhimento de culturas.

Mostrou testemunhos de imigrantes que dizem “estar” refugiados e que escolheram o Brasil em vez da Europa porque no velho continente continuariam “para sempre” refugiados. “Eles dizem que aqui no Brasil têm a esperança de mudar essa situação”, afirma.

Capuano relatou sua experiência na UFABC com imigrantes de vários países, especialmente as comunidades de haitianos residentes em Santo André e de sírios em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. A criação do programa de português para imigrantes e refugiados em altas vulnerabilidades encontrou desafios como a própria certificação do curso e a forma de enfrentar a diversidade dos alunos, relatou.

fotos: Irish Defence Forces;
Reprodução;
Luciano Pontes / Secom
Maurilio Cheli/SMCS