Pablo Ortellado e José Álvaro Moisés avaliam conjunturas que levaram aos ataques de 8 de janeiro
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Os atos do dia 8 de janeiro fizeram parte de um contexto complexo no qual o Brasil e outras partes do mundo estão inseridos: a ascendência da extrema direita. Muitas análises sobre esse assunto passam pelas redes sociais. “Com certeza, existe uma dimensão comunicacional importante, isso parece óbvio”, afirmou Pablo Ortellado, professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Para ele, apesar do grande empenho acadêmico em relacionar a ascensão de grupos radicalizados aos novos meios de comunicação digitais, não existem evidências contundentes para se determinar uma relação de causa e efeito entre esses dois fenômenos. Ortellado não descarta que “talvez os processos de natureza política e social sejam mais importantes do que as condições comunicacionais”.
Ao lado do cientista político José Álvaro Moisés, o filósofo participou do segundo seminário “A Proteção das Instituições Republicanas: Os Atos de 8 de Janeiro”, realizado no dia 27 de janeiro no IEA.
Uma das principais teses que relacionam as mídias sociais com a ascensão do populismo autoritário de direita é baseada no conceito de bolhas nas redes, que são um tipo de vícios dos algoritmos das redes sociais com tendência a mostrar somente opiniões e notícias que convergem com a visão de mundo do usuário. Acredita-se que as bolhas provoquem, a longo prazo, a radicalização desse usuário. Porém, Ortellado afirma que não existem evidências suficientes para comprovar essa tese. Pelo contrário: o nível de homogeneidade das relações fora da internet é muito semelhante aos de dentro das redes. “Fora das mídias sociais, nós mantemos relações sociais homogêneas de amigos, até mesmo geograficamente. Tendemos a morar em bairros com pessoas de perfis muito semelhantes aos nossos”, afirmou.
Outra tese é a de que as pessoas são levadas para esse campo ideológico pela desinformação, através de informações falsas. Mas, na análise de Ortellado, embora exista um crescimento de veículos hiper partidários, a mentira não é muito típica neles. Distorção, manchetes em desacordo com os textos ou notícias fora de contexto são muito mais importantes nesses veículos. Ele também argumentou que os veículos de comunicação e os partidos de esquerda tendem a valorizar o impacto das mentiras na formação desses novos grupos populistas. Para Ortellado, a imprensa o faz porque enfatiza a importância do próprio papel. Já a classe política é motivada a aumentar os efeitos da dinâmica comunicacional por não conseguir dar uma resposta à face política do problema. “Há muitos interesses concorrendo para a ideia de que estamos formando juízos políticos equivocados por estarmos consumindo mentiras”, analisou o professor.
A dificuldade para se conseguir evidências do uso maligno da comunicação digital se dá pelo modelo criptográfico dos aplicativos de mensagens instantâneas, como Whatsapp e Telegram, hoje mais utilizados por grupos radicalizados do que redes como Facebook, Instagram e Twitter. Por isso, Pablo Ortellado defende que seja regulamentada por lei a rastreabilidade desses conteúdos, distinguindo a privacidade do ponto de vista regulatório da conversa individual e da comunicação de massa, a fim de se conseguir evidências para investigações policiais. “É uma lei muito controversa, mas necessária para enfrentar o problema da difusão de conteúdos maliciosos virais”, avaliou.
O que as evidências atuais apontam, segundo Ortellado, é que as pessoas estão consumindo mais informações distorcidas dentro de circuitos de produção que se empenham em adaptar o que está sendo produzido pelo jornalismo profissional e enquadram dentro de ideologias e narrativas partidárias. Também se observa a existência de grupos que perderam completamente contato com os veículos de imprensa tradicionais, o que, para o professor, afasta essas pessoas da verdade factual. Quando se consome tanto os veículos super-partidários quanto a imprensa tradicional, a segunda ajuda a corrigir distorções das primeiras. Mesmo considerando esses mecanismos, Pablo Ortellado acredita que não se deve abandonar a tese de que o problema é de natureza política e social.
Nesse sentido, José Álvaro Moisés, coordenador do Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia do IEA, afirmou que “o que nós estamos presenciando no Brasil não é um fenômeno estritamente local”. Ele nota que há uma crise internacional da democracia especialmente devido à ineficácia dos mecanismos de representação e o aumento da desigualdade social. “As pessoas que perderam renda, status ou posição foram se distanciando da democracia e deixando de se sentirem representadas”, analisou.
Para Ortellado, internacionalmente esses fenômenos têm em comum seu aspecto populista, ou seja, são baseados no antagonismo em relação às elites. “Em particular com as elites culturais e políticas, isso é relativamente comum entre os fenômenos e conseguimos mapear tanto nas retóricas dos presidentes quanto nas máquinas que estão a serviço deles”, apontou.
Moisés também vê como crucial para essa análise o entendimento dos agentes que usam os mecanismos da democracia para subvertê-la. “É preciso olhar para esses aspectos da crise da representação e como as lideranças se apresentam para responder a essa crise”. E completa: “Não existe democracia sem democratas”.
O dia 8 de janeiro
Ao mesmo tempo que o novo governo que se propõe, com pouco mais de 50% dos votos, a reconstruir o país após tudo que aconteceu no Brasil nos últimos quatro anos, na visão de Moisés, o país passou por uma ameaça extremamente séria de golpe de Estado por parte dos apoiadores do candidato que teve pouco mais de 49% dos votos. Os ataques às sedes dos Três Poderes republicanos em Brasília não foram atos isolados, em sua opinião, e sim um ponto de uma conjuntura delicada. “O Brasil é hoje uma sociedade literalmente dividida ao meio, e uma das duas metades é formada por segmentos golpistas que ameaçam a democracia”.
Por isso, a eleição e a posse do presidente Lula aconteceram entre graves desestabilidades. Além da contestação do resultado das eleições por parte do Partido Liberal (PL), sigla com maior número de representantes na Câmara dos Deputados, Moisés cita a tentativa de invasão do prédio da polícia federal no dia 12 de dezembro, dia da diplomação da chapa vencedora do pleito presidencial, quando radicais atearam fogo em ônibus e ameaçaram civis. Na véspera do Natal, houve a tentativa de causar uma explosão com bomba dentro de um caminhão pipa que carregava querosene. Por fim, o episódio de depredação aos prédios dos Três Poderes. “Não são pequenos atos e todos eles tinham uma conexão", afirmou.
O cientista político defendeu que o golpe contra a democracia no Brasil envolveu preparação, financiamento e cuidadoso planejamento. “Ainda não temos informações suficientes, mas teve civis, parlamentares e militares apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro”. Nesse contexto, Moisés avaliou que o governo Lula acertou em cheio ao não declarar uma Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prevista no artigo 142 da Constituição brasileira. A intervenção na segurança do Distrito Federal foi suficiente para estancar a sangria da paralisia das forças policiais. Para ele, a declaração do presidente de que havia perdido a confiança em alguns militares soou como uma demonstração do governo de que está preparado para ir adiante no processo de responsabilização dos crimes cometidos.
O pesquisador avalia que o problema vem desde 2013. Na época das jornadas de junho, houve uma falha na resposta dos principais partidos – segundo ele, PT, PSDB, PMDB e DEM. Essa falha deixou um espaço que foi ocupado pela extrema-direita, principalmente no que diz respeito ao combate à corrupção, avalia Moisés.