Ruha Benjamin e Conceição Evaristo debatem discriminação racial e tecnológica
Refletir sobre qual é o papel das comunidades negras brasileiras, assim como também das comunidades indígenas no campo da tecnologia. Essa foi uma das preocupações trazidas pela escritora Conceição Evaristo, ativa participante dos movimentos de valorização da cultura negra no Brasil, durante o evento Mulheres, Raça e Tecnologia realizado na terça-feira, 12 de julho. “Somos protagonistas, vítimas ou podemos interferir, mesmo que em pequena escala, nesse campo, a partir da nossa experiência?”, indagou.
Em diálogo com a socióloga Ruha Benjamin, do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Princeton (EUA), Evaristo, que é a nova titular da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, disse que pensar a tecnologia contemporânea no campo brasileiro, sem voltar ao processo histórico, é queimar etapas. “Há um vácuo muito extenso”, pontuou. “A primeira tecnologia com defasagem ainda muito grande para a comunidade afro-brasileira é a do acesso à alfabetização”.
As reflexões integraram o 2º encontro intercátedras do IEA, que desta vez foi organizado pela Cátedra Oscar Sala, parceria do IEA com o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), e pela Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, parceria com o Itaú Cultural. O evento teve moderação de Virgílio Almeida, titular da Cátedra Oscar Sala.
Vigilância racializada
Estudiosa das dimensões sociais da ciência, tecnologia e medicina, Ruha Benjamin abriu sua conferência citando uma frase de Toni Cade Bambara, autora afro-americana: “not all speed is movement” (nem toda velocidade é movimento), para demonstrar como as novas tecnologias reproduzem antigas desigualdades.
Para ilustrar, Benjamin apresentou imagens de robôs usados para patrulhar a fronteira dos Estados Unidos com o México e dos patrulheiros chicoteando imigrantes que tentam atravessar o Rio Grande para entrar no país. “É a desumanização rotineira das populações negras”, afirmou. “Mas precisamos reconhecer que não apenas os agentes de fronteira a cavalo, mas as próprias fronteiras, são construções políticas e ferramentas que perpetuam as desigualdades mundiais”.
Segundo a socióloga, o extremo mais insidioso desse espectro é o uso de documentos digitais para discriminar cidadãos na República Dominicana. A chamada “vigilância racializada” vem se intensificando cada vez mais por meio da criação de bancos de dados de imigrantes, sistema de monitoramento eletrônico, identidade eletrônica, as chamadas ‘fronteiras inteligentes’ com reconhecimento facial, uso de drones, entre outros.
Para Benjamin, o poder das tecnologias está baseado em um conceito falso de que elas seriam mais objetivas e humanitárias se comparadas, por exemplo, a um agente de fronteira empunhando o chicote. Nesse sentido, alertou para o fato de que a inovação, na verdade, emprega novas ferramentas para vigiar pessoas inocentes e define com mais exatidão onde as pessoas deveriam pertencer ou não.
“Não queremos consertar um sistema quebrado e sim re-imaginar completamente o sistema, empregando ferramentas criativas para ir contra o status quo”, afirmou Benjamim, ressaltando que diversificar o desenvolvimento tecnológico não significa ter uma solução para combater os males. “Nós não devemos perder de vista o fato de que não é apenas a tecnologia que é opressora, mas também o ambiente em que ela é desenvolvida.”
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Contexto brasileiro
Evaristo destacou que a população negra do país se apropriou tardiamente da educação, o que se reflete no atual acesso à tecnologia. Retomou a história do acesso à educação para pessoas negras no Brasil, da Constituição de 1824 à Lei de Cotas, de 2006, para argumentar que é impossível que a tecnologia seja democrática se o ponto de partida dela não foi.
“O primeiro acesso à tecnologia básica já é negado aos descendentes de africanos no Brasil”, falou, elucidando que o decreto de 1884 - “pela legislação do império os negros não podiam frequentar escolas, pois eram considerados doentes de moléstias contagiosas” -, agiu até 1889, com a proclamação da República.
Evaristo mostrou também que o registro da primeira escola para negros existente no Brasil, a Escola Pretextato, iniciativa de um homem que havia sido escravizado, funcionou de 1853 a 1873, no Rio de Janeiro. Citou ainda a exclusão das mulheres negras e pessoas escravizadas na escola através do Decreto 7031, de 6 de setembro de 1878, em que “só podiam se matricular pessoas do sexo masculino, maiores de 14 anos livres ou libertos, saudáveis e vacinados”, explicando que apenas uma década depois, com a Constituição de 1888, houve a permissão para escolarização dos negros no Brasil.
A escritora conta que, a partir daí, em 1983, “em caráter compensatório”, foram concedidas bolsas de estudo a estudantes negros com o Projeto de Lei do deputado Abdias Nascimento. E somente há 16 anos, em 30 de maio de 2006, é que surgiu a Lei de Cotas. “Essa posse básica ainda compõe a nossa luta”.
Escolas de liberdade
Segundo a pesquisa Potências Negras Tec, no Brasil, o mercado de tecnologia é predominantemente masculino (73%) e a maioria dos cargos de liderança é ocupada por brancos (56%). “A pesquisa aponta que, para as mulheres negras, é ainda mais difícil. O domínio do inglês é uma barreira para 56% das negras e apenas 13% para as brancas. A tecnologia é muito marcada pela língua inglesa, inclusive exportada dos Estados Unidos. Então, a própria linguagem também já é uma dificuldade para as mulheres negras acessarem esse mundo tecnológico”, disse Evaristo. “Quando falamos em tecnologia podemos pensar em acessos limitados e nada democráticos para a comunidade afro-brasileira”.
A escritora expôs algumas iniciativas como contraponto a essa realidade, como a PretaLab, projeto idealizado por Silvana Helena Gomes Bahia, também conhecida como Sil Bahia, voltado à inclusão de mulheres negras nas áreas de tecnologia e inovação, que completa cinco anos com mais de 600 mulheres.
Durante o debate, Ruha compartilhou a ideia de um projeto que vem desenvolvendo em seu laboratório no Departamento de Estudos Afro Americanos em Princeton, as chamadas “freedom schools” (escolas de liberdade). “Estamos aprendendo mais sobre as tradições e podemos pensar neste século 21 em escolas de liberdade tecnológica, para ver se estamos tendo um pensamento mais crítico com relação à desigualdade e as habilidades necessárias para podermos ler a nossa realidade social com mais precisão”, comentou, destacando que o “modelo” pode ser adaptado em outros locais, não apenas nos Estados Unidos. “Gostaria de pensar também em ‘quilombos digitais’, como algo que possa impactar, especialmente, os mais jovens que passam tanto tempo na internet”.
De acordo com Evaristo, “a tecnologia pode produzir novas formas de libertação, como também pode produzir novas formas de escravização, principalmente em países que, historicamente, já têm essa condição”, colocou. “Por trás da tecnologia, tem uma mente humana. A tecnologia não surge por geração espontânea. É altamente comprometida com o capitalismo, tem que ser produtiva e trazer resultados. Em uma sociedade em que os inventores, os cientistas, têm um imaginário já construído negativamente em relação ao negro, ao pobre, ao gay, ao indígena, ao imigrante, essas invenções estão contaminadas com isso. Portanto, não há uma inocência", disse. "Essa sociedade tecnológica já é uma sociedade programada para produzir exclusão e para perpetuar determinados lugares, status. Um jovem negro sabe que precisa se apossar da tecnologia como ‘arma’ de enfrentamento”.
A abertura do evento foi feita por Guilherme Ary Plonski, diretor do IEA, que enfatizou sobre a atualidade da temática. “O tema junta uma preocupação que todos nós temos com aspectos da tecnologia que configuram um lado, por vezes, um pouco sombrio, não esperado, com questões que são essenciais da sociedade, de raça e gênero, resultando em uma conjugação importante”.