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Saúde planetária demanda ações concretas e diálogo entre áreas do conhecimento, dizem pesquisadores

por Beatriz Herminio - publicado 06/09/2022 15:36 - última modificação 06/09/2022 15:36

O último encontro do ciclo Jornadas Investigativas Contemporâneas, sob o tema "Saúde Planetária na Prática: da Declaração de São Paulo às Ações Concretas", reuniu pesquisadores de diferentes áreas no dia 1º de setembro

Para debater ações que promovam uma "mudança profunda, rápida e estrutural da forma como vivemos", o evento Saúde Planetária na Prática: da Declaração de São Paulo às Ações Concretas reuniu pesquisadores de diferentes áreas, membros do Grupo de Estudos em Saúde Planetária do IEA. Parte do ciclo Jornadas Investigativas Contemporâneas, aconteceu no dia 1º de setembro.

A Declaração de São Paulo sobre Saúde Planetária foi o ponto de partida das exposições. Ela ressalta a urgência das ações para mudar o curso atual da sociedade e reverter a disrupção causada nos sistemas naturais e suas consequências para a saúde humana e do planeta, afirmou Antonio Mauro Saraiva, coordenador do grupo e do encontro, participante do Programa Ano Sabático do IEA em 2022.

Produzida pela Aliança de Saúde Planetária e a Universidade de São Paulo, em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a declaração foi lançada em outubro de 2021 na Conferência Anual de Saúde Planetária, realizada pela primeira vez na América do Sul, e foi assinada por mais de 250 organizações de mais de 45 países.

Biodiversidade e alimentação

Na declaração, a proteção da biosfera está em primeiro lugar, ao lado da melhora da qualidade da saúde. Equilibrar as duas áreas é o grande desafio em direção a um planeta mais saudável, apontou Enrique Falceto de Barros, Médico de Família e Comunidade e professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS).

Ele disse que, nos últimos anos, foi observada uma queda da mortalidade infantil abaixo dos 5 anos e um aumento da expectativa de vida a nível global, um reflexo dos avanços na área da saúde. "Como a gente melhora a saúde, o que vai exigir mais energia, remédios e recursos naturais, sem destruir o planeta?". Para isso, é necessário aumentar a eficiência, afirmou.

Pensando a alimentação no contexto da saúde planetária, Aline Martins de Carvalho, doutora em Nutrição e coordenadora do Sustentarea, levantou a necessidade de avaliar os alimentos não somente por sua composição nutricional, mas também pelo sistema alimentar em que estão inseridos, que se inicia na produção do alimento e termina em seu descarte.

Alguns aspectos a serem considerados são, por exemplo, o tipo de produção – se o alimento é produzido por um pequeno produtor ou uma monocultura –, se é agroecológico ou uma commodity, se é proveniente de pecuária extensiva ou intensiva, se é derivado de um processamento simples ou de um ultra processamento, a forma como é transportado, entre outras questões.

"Todas essas relações de produção e transporte vão ter impactos totalmente diferentes no meio ambiente", pontuou. A venda e o consumo também fazem parte do ciclo, sendo importante questionar se o alimento é comercializado em feira, venda de bairro ou supermercado; se é um produto in natura, se precisa ser cozinhado, se sobrará restos de seu consumo e, nesse caso, se os restos são compostáveis ou recicláveis.

Ela apontou que uma das questões colocadas na declaração é em relação ao setor agrícola e sistemas alimentares, reconhecendo que eles estão no centro da saúde planetária em termos de atendimento às necessidades alimentares globais, alcance da justiça social e diminuição do impacto em sistemas naturais. O modo como esse setor avança com as práticas agrícolas e as opções de alimentos determinará o futuro da saúde e do bem-estar humanos. Ainda, ressaltou que decisões tomadas no campo têm impacto sobre o preço do alimento e quem tem acesso a eles.

Segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mais de 50% da população brasileira convive com a insegurança alimentar, e cerca de 33 milhões de brasileiros passam fome. "Por um lado, o país tem uma produção de alimentos enorme e, por outro, muita pobreza e insegurança alimentar", afirmou Aline.

A nutricionista expôs uma análise da produção de alimentos e acesso a recursos em diferentes regiões do país, chegando a um cenário com "Quatro Brasis", divididos por alguns indicadores. Alguns estados, apesar de próximos, apresentam realidades bastante diferentes, ressaltou.

Os estados da região Nordeste, sendo os mais pobres do país, apresentaram o pior desempenho em relação aos sistemas alimentares sustentáveis, com menor produtividade e renda média no campo, além de menor acesso à eletricidade e recursos hídricos para produção de alimentos.

Nas regiões Sudeste e Sul, foi verificada uma melhor performance em relação à sustentabilidade do sistema alimentar. Apesar disso, elas registraram a maior desigualdade de gênero e raça no campo e maior uso de agrotóxico, e compõem o segundo grupo com maior número de notificações de intoxicação por agrotóxicos na agricultura.

Os estados da região Centro-Oeste, junto ao Tocantins e ao Acre, demonstraram melhor acesso à infraestrutura no campo e maior acesso físico e financeiro aos alimentos, mas registram o maior uso de água e emissão de Gases de Efeito Estufa (GEE) na agricultura e no consumo.

Já os estados Amazonas, Pará, Roraima e Amapá apresentam o pior cenário de segurança alimentar e nutricional, menor acesso e disponibilidade de alimentos, menor diversidade da dieta e maior carga de desnutrição crônica infantil.

Além de ações individuais, como mudanças na alimentação e no consumo de alimentos, Aline apontou a necessidade de ações coletivas por meio de instituições e políticas públicas para que se produza uma alimentação de qualidade acessível física e financeiramente.

Ela destacou que já se sabe que os grandes pontos para se ter uma alimentação saudável e sustentável são a redução do consumo de carne, aumento do consumo de frutas, verduras e legumes, e a mudança na forma de produção. No entanto, "não adianta falar sobre redução do consumo de carne sem entender o significado de comer carne no Brasil", pontuou.

Aline questionou o que as instituições têm feito a partir das mudanças e das demandas da população. Se nos restaurantes universitários, por exemplo, a única alternativa é a soja, estaríamos diante de um cenário adequado para promover uma mudança de comportamento alimentar? O mesmo foi questionado por ela no caso da diversidade ou falta de diversidade na alimentação oferecida pelas empresas aos seus funcionários.

Para Braulio Ferreira de Souza Dias, biólogo e professor na Universidade de Brasília (UnB), se o intuito é induzir mudanças de comportamento nas pessoas, o aspecto econômico deve ser enfrentado. "Por que a cesta básica é taxada no Brasil? Por que não tem isenção de impostos para os principais alimentos?", questionou. No caso do gasto de combustível para transporte de alimentos, ele lembrou que isso poderia ser revertido em políticas de preferência de consumo de alimentos produzidos localmente.

Em sua exposição, o biólogo apontou que nos últimos anos o Brasil tem sido o campeão na perda de biodiversidade, sendo a Amazônia e o Cerrado os biomas com as maiores perdas absolutas de ecossistemas nativos nos últimos 37 anos, representando 90% de toda a perda.

No dia 26 de agosto, foi lançada em Brasília a última coleção de dados e estatísticas da iniciativa MapBiomas, que monitora os biomas brasileiros. Entre os dados explorados por Dias, está a perda de cerca de 32% do território continental em hectares de 1500 a 2021. No período de 1985 a 2021, houve uma perda de 17,1% da superfície de água no país. Já o bioma com maior perda relativa de ecossistemas nativos nos últimos 37 anos foi o Pampa, com redução de cobertura nativa de 61,3% em 1985 para 46,3% em 2021.

"Não será possível reverter todo esse processo, então eu acho que mais e mais a gente precisa dar atenção para adaptação. O que a gente pode e deve fazer para promover mais adaptação às novas condições ambientais?", questiona.

O desequilíbrio provocado pelo agravamento das situações de risco ambiental gera surtos de pragas e doenças no setor agrícola e dispersão de vetores de doenças humanas para regiões em que elas não ocorriam previamente. Fenômenos desse tipo relacionados ao aquecimento global estão associados, no Brasil, não somente à queima de combustíveis fósseis, mas principalmente ao uso de terra, lembrou.

Raquel Santiago, doutora em Saúde Pública e professora na Faculdade de Nutrição da Universidade Federal de Goiás (UFG), destacou algumas mudanças necessárias no campo da alimentação quando se trata de biodiversidade, como ampliação do número de espécies nativas utilizadas, mitigação dos problemas relacionados a dietas simplificadas e fortalecimento da conservação e do manejo sustentável da agrobiodiversidade.

Para pensar estratégias de implementação de ações, ela expôs o projeto Biodiversidade para Alimentação e Nutrição (BFN, do inglês), que identifica espécies nativas em quatro países de grande biodiversidade e utiliza a alimentação como estratégia de conservação, com o intuito de promover espécies nativas de alto valor nutricional que são subutilizadas ou negligenciadas. Entre os frutos do projeto está um Banco de dados de composição nutricional da biodiversidade brasileira.

Comunicação e educação

"Nunca se comunicou tanto, porém nunca se comunicou tão mal", afirmou Daniela Vianna, jornalista e doutora em Ciência Ambiental. Em uma era de negacionismo científico, com muitos recursos e métodos para negar a ciência e atrasar processos de mudança que a ciência aponta como necessários, a declaração recomenda a implantação de uma imprensa livre como plataforma aberta de discussões, comprometida a informar e educar a sociedade na questão da ciência da saúde planetária.

Nesse sentido, Daniela falou do jornalismo como um "pássaro com duas asas", que deve ao mesmo tempo sinalizar rumos e perspectivas e denunciar o que está errado – atribuindo responsabilidade àqueles que estão danificando os sistemas naturais. Para ela, as mensagens têm o poder de influenciar mudanças de comportamento.

No cenário de excesso de informações em que vivemos – uma infodemia – ela enxerga oportunidade para que os cientistas se tornem comunicadores de seus trabalhos. A tarefa, contudo, requer desafios, como fazer interconexões entre diferentes campos científicos e comunicar de forma engajadora. Ela citou como exemplos de projetos de divulgação científica o Clima Info, Clima Sem Fake e a série de podcasts Comida que sustenta, do Sustentarea.

A incorporação da saúde planetária em todos os níveis de ensino fundamental e médio foi apontada por Tatiana Souza de Camargo, bióloga e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), como uma estratégia importante na educação e capacitação de jovens para se tornarem líderes atuais e futuros em ações de saúde planetária. Independentemente da disciplina, Tatiana defendeu a incorporação de currículos de saúde planetária em todos os programas e faculdades.

No caso do ensino superior, é importante defender e priorizar a alocação de recursos para permitir e estimular bolsas de estudo e educação transdisciplinares em saúde planetária, dentro das instituições e entre elas.

Alguns dos desafios da educação estão na necessidade de uma interdisciplinaridade não apenas nos conteúdos, mas no formato, nas maneiras de se comunicar, tipos de pesquisa, entre outras questões.

Além disso, ela criticou o fato de pautas ambientais serem desvinculadas das pautas sociais nos debates sobre ações concretas. Conservar a biodiversidade, por exemplo, não é apenas uma questão ambiental; é uma ação de segurança alimentar e de proteção do direito de acesso ao alimento.