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Tecnologias, leis e cultura política precisam ser revistas na promoção da democracia

por Sylvia Miguel - publicado 27/04/2016 18:40 - última modificação 14/06/2017 11:26

O Impacto da Corrupção na Qualidade da Democracia foi tema de debate no dia 19 de março.

Em 1988, quando o país reformou a Constituição e o próprio Estado brasileiro, a Internet já era uma realidade, mas não existia ainda a rede mundial de computadores. A sociedade não previa o enorme impacto das novas tecnologias digitais na política. Hoje, no entanto, até o discurso político e muitas ferramentas de gestão, inclusive do Estado, são norteados pelos avanços tecnológicos e da própria web. A revolução tecnológica que o mundo viverá nos próximos 40 anos representará uma quebra de paradigma que irá impactar profundamente a política, em especial as questões ligadas à transparência e à participação popular.

Alan Lisler

Alan Lisler, da Vérsila Educacional, aposta nas novas tecnologias para uma gestão transparente e participativa.

O alerta foi feito por Alan Lisler, fundador e Diretor Geral da Vérsila Educacional, um dos maiores acervos acadêmicos digitais gratuitos com produções dos melhores centros de pesquisa do mundo. Pedagogo formado pela Faculdade de Educação (FE) da USP, Lisler participou do debate O Impacto da Corrupção na Qualidade da Democracia, realizado pelo IEA no dia 19 de abril na antiga Sala do Conselho Universitário da USP.

“Durante a votação do impeachment no dia 17 de março, muitos políticos citaram em seus discursos as redes sociais ao dar seus votos. Nossos atores políticos devem atentar para uma quebra no paradigma tecnológico nos próximos 40 anos que deverá impactar e muito a política, principalmente no que se refere à transparência e à participação popular”, disse Lisler.

NUPPs lança jornal acadêmico

O debate O Impacto da Corrupção na Qualidade da Democracia marcou o lançamento do edital de chamada para a publicação de trabalhos no International Journal of Research on Corruption and Democracy - IJRCD. A nova revista acadêmica buscará examinar as relações entre corrupção e democracia no Brasil e no mundo.

A linha editorial multidisciplinar está aberta às áreas da ciência política, sociologia, direito, economia, administração, história, relações internacionais, filosofia e tecnologia. Os artigos deverão estar relacionados a temas como transparência, responsabilização, participação popular, qualidade da democracia, relação das instituições democráticas e o papel da legalidade. Os detalhes para submissão de trabalhos estão disponíveis no site da Corrupteca, que hospedará a revista.

Com periodicidade anual, sua primeira edição tem lançamento previsto para 9 de dezembro,  durante a semana internacional de combate à corrupção. .

“Depois da biblioteca digital Corrupteca, notamos que chegou o momento do NUPPs oferecer uma revista especializada em corrupção”, disse Alan Lisler, que é também diretor de tecnologia da Corrupteca, a Biblioteca Internacional da Corrupção, do NUPPs.

 

O debate buscou discutir corrupção e democracia numa perspectiva histórica, apesar do furor dos acontecimentos políticos recentes no Brasil, segundo o professor José Álvaro Moisés, coordenador do Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia do IEA e o Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP (NUPPs), responsáveis pela organização. O encontro também contou com a participação de Roberto Livianu, promotor do Ministério Público de São Paulo e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, e de Fernando Filgueiras, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor de comunicação e pesquisa da Escola Nacional de Administração Pública (Enap).

Ao exemplificar o impacto da tecnologia na esfera pública, Lisler citou um projeto experimental do Massachusetts Institute of Technology (MIT) que começa a ser implantado no Rio de Janeiro. O trabalho envolve o sensoriamento e controle de uma série de dados sobre água, energia, transportes e políticas públicas, dentro dos parâmetros do que se chama smart cities, ou cidades inteligentes. O projeto irá reunir uma quantidade suprema de informações, os chamados big data, segundo Lisler.

“Poderíamos dizer que a geração de big data desse gênero seria um projeto para cidades futuristas, de classe média alta de países desenvolvidos. Mas o MIT escolheu justamente uma cidade com urbanização complexa, rodeada de favelas”, disse. "O intuito é mostrar que as redes inteligentes podem ser soluções para diversos problemas. Na prática, isso irá refletir em transparência na administração pública e poderemos monitorar os resultados, bem como a aplicação dos recursos públicos”.

Arquiteto de software e cientista da informação, Elsasi aposta em aplicativos seguros no futuro para facilitar processos populares como plebiscitos, por exemplo. “Com a biometria e sistemas mais seguros, é possível olhar os próximos 50 anos e prever que as tomadas de decisão poderão ser mediadas pela tecnologia”, disse.

Extinção da corrupção é mito, diz especialista

Roberto Livianu

Roberto Livianu: "Foro privilegiado não pode ser instrumento de esconderijo."

“A corrupção não é extinguível, assim como a violência e a desigualdade também não são. Precisamos de pragmatismo e entender que essas coisas são apenas controláveis. E isso não ocorre por obra do acaso. Depende de vontade política”, disse Roberto Livianu.

Para o promotor de Justiça, os diversos pactos firmados internacionalmente contra a corrupção vêm trazendo resultados que se sobrepõem, inclusive, à nacionalidade dos países. Citou o caso do ex-diretor do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, acusado em 2005 de envolvimento no escândalo do Mensalão. Condenado por crimes ao patrimônio público, fugiu para a Itália usando passaporte do irmão falecido. Pelo princípio da reciprocidade garantido no Direito Internacional, a Itália se viu no direito de negar o pedido de extradição de Pizzolato, uma vez que o Brasil havia recusado entregar Cesare Battisti, um ex-militante italiano de extrema esquerda.

“Mas ao final, Pizzolato foi entregue e está preso no Brasil e isso demonstra uma união internacional de combate à corrupção”, disse.

O caso da Lava Jato deu maior visibilidade à corrupção praticada no Brasil, o que de certa forma demonstra um bom funcionamento das instituições, acredita o promotor. “Pior seria se a corrupção estivesse visível, mas sem investigação, processo e punição. Isso dá uma perspectiva de uma situação melhor no futuro”, disse.

Além disso, existe cada vez mais a cultura do trabalho conjunto entre o Ministério Público, a polícia, a magistratura e a Receita Federal, lembrou. Citou o caso em que o deputado Paulo Maluf (PP) entrou com ação por perdas e danos contra o jornalista José Nêumane Pinto por esse utilizar a expressão “malufar” como sinônimo de corrupção. “O juiz indeferiu a petição inicial dizendo que já se trata de um neologismo incorporado à língua portuguesa, sendo notório o que o termo significa”, afirmou.

A cultura do “você sabe com quem está falando”, que ainda prevalece no Brasil, dá cadeia na Suécia, ressaltou. Lembrou o caso de um juiz do Rio de Janeiro que deu uma “carteirada” numa agente de trânsito, entrou com ação contra o Estado e ainda ganhou indenização do pela atuação da agente de trânsito.

Lamentou a perda de critério sobre o que é público e o que é privado. “Um avião público do Senado foi utilizado para levar Renan Calheiro para fazer implante capilar. Outros usaram avião público para ver jogos da Copa, outros para ir a casamento. Acreditam que a coisa pública é uma extensão do seu patrimônio. Fiquei atônito com os deputados citando avós, netos ou filhos na hora do voto pelo impeachment, dado que isso não tem nada de interesse social”, disse Livianu.

Foro privilegiado

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Livianu se coloca favorável à extinção do foro privilegiado que, na sua visão, dá direitos desproporcionais a alguns em detrimento de outros, ferindo o princípio democrático da isonomia, ou seja, da igualdade perante a lei. Citou o artigo que assinou na Folha de S. Paulo sobre o tema.

O promotor ressalta que qualquer microprefeito hoje possui foro privilegiado, o que é insustentável ante a sobrecarga de trabalho dos tribunais. “Defendo a igualdade de todos perante a lei. A Constituição de 1988 amplificou e muito a ideia do privilégio, o que não combina com isonomia. O foro privilegiado precisa ser repensado. Pode ter sido válido no tempo do coronelismo, para proteger a vulnerabilidade de juízes de primeiro grau, mais sujeitos a pressões e, portanto, suscetíveis a tomar decisões não proporcionais ao desejo da sociedade”, disse.

Porém, os sistemas judiciais se fortaleceram e o país conquistou a independência judicial. A atuação do juiz Sergio Moro corrobora esse argumento, afirmou.

O promotor destacou também a crise dos partidos políticos atuando na contramão da democracia. “Os partidos nanicos prestam um desserviço ao país. Transformaram-se em balcão de negócios. Muitos partidos dão legenda para quem é ficha suja”.

Por outro lado, o número absurdo de partidos contraria o interesse público, acredita Livianu. “Temos um partido da mulher brasileira cujo único parlamentar é homem. Temos um partido ecológico nacional que tem um presidente processado por crime ecológico. Isso é garantia de diversidade, ou uma moeda de tempo de TV, truculência, golpismo?”, questiona.

Cultura política ambivalente

Mesa de abertura

A partir da esq.: Livianu, Filgueiras, Moisés e Eldasi

Para o professor Moisés, apesar do rito democrático do processo eleitoral, ainda é incipiente no Brasil a aplicação do império da lei, princípio que garantiria uma competição eleitoral baseada em igualdade de condições. O professor voltou a ressaltar a inexistência da chamada accountability, ou seja, de mecanismos que permitam avaliar e julgar a responsabilidade no exercício das funções públicas, bem como de controle do abuso de poder.

O professor Fernando Filgueiras lembrou que a corrupção produz uma patogenia institucional e como resultado reproduz injustiça, colocando em xeque não só a qualidade das instituições, mas da própria democracia.

Uma pesquisa que coordenou em 2012 revelou que as instituições mais desacreditadas pelos brasileiros são o Congresso Nacional, os empresários e o poder judiciário. As que inspiram mais confiança são a Polícia Federal, o Ministério Público e as instituições religiosas.

Para 45% da amostra pesquisada em 2012, o judiciário não toma suas decisões sem sofrer influência de políticos ou empresário. Mas para 25%, as decisões do judiciário são imparciais.

As instituições que mais promovem a justiça são escolas, universidades, a Igreja, organizações não governamentais e associações civis. As que menos promovem são o Congresso Nacional, os governos e o poder judiciário, revelou a pesquisa.

O levantamento também apurou para quem a Constituição de 1988 promove a justiça. Na opinião de 23% dos entrevistados, a Carta favorece os políticos; para 19%, os mais ricos; para 11,7%, a sociedade e, para 10,9%, ela favorece os empresários.

Fernando Filgueiras

Para Fernando Filgueiras, cultura política do brasileiro transita entre o democrático e o autoritário.

A pesquisa revelou ainda uma ambivalência quanto ao valor dado à democracia. Para 48% da amostra, a democracia é melhor que qualquer outra forma de governo. No entanto, 21% acreditam que em alguns momentos um governo autoritário pode ser melhor que um democrático, sendo que 26,5% não veem diferença entre um governo democrático e um governo autoritário.  Além disso, 50% revelam estar insatisfeito com a democracia.

Para Filgueiras, os números chamam a atenção para “uma cultura política ambivalente entre a democracia e o autoritarismo”. Nesse sentido, o autoritarismo acaba sendo usado como justificativa para o problema da corrupção, conclui o professor.

professor Paulo Saldiva, recém empossado diretor do IEA, participou do debate e aproveitou para fazer um convite ao público. "Está na hora de propor uma terapêutica para as patologias do Estado brasileiro e o IEA tem condições de incubar uma série de ciclos para repensar e reconstruir o Brasil. Convido os interessados, jovens cientistas ou players importantes, para debater política, saúde, habitação, controle da corrupção e outros temas que possam dar uma devolutiva para a sociedade".