Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Documento ressalta urgência para mudanças nas universidades brasileiras

Documento ressalta urgência para mudanças nas universidades brasileiras

por Mauro Bellesa - publicado 11/10/2018 13:35 - última modificação 11/12/2018 11:23

O seminário "A Universidade diante do Espelho", realizado no dia 10 de outubro, marcou o lançamento do relatório "USP: Proposta de Agenda para o Futuro", produzido pelo Grupo de Trabalho A USP diante dos Desafios do Século 21".
A USP diante do Espelho - Painel 1
Painel 1 - Transformações Contemporâneas do Ensino Superior - com (a partir da esq.) Naomar de Almeida Filho, Luiz Bevilacqua, Soraya Smaili, Elizabeth Balbachevsky e José Goldemberg

Ouvir a sociedade e procurar atender às suas demandas, internacionalizar-se efetivamente - não só com intercâmbio de estudantes -, redução e flexibilização curricular, desburocratização, buscas de novas fontes de recursos, atingir a todos que queiram ter formação superior, contar com modelos diferenciados. Esses são alguns dos principais desafios da universidade brasileira diante do ritmo cada vez mais acelerado das transformações sociais e na produção de conhecimento.

Mais que desafios, essas questões talvez sejam imperativos para a universidade continuar a desempenhar o papel de principal agente de produção de conhecimento e formação de cientistas e profissionais.

Luiz Bevilacqua, professor visitante do IEA e ex-reitor da UFABC, costuma usar uma metáfora esportiva para definir as exigências do momento: "Uma onda que quebra na praia é uma onda de choque. As transformações no mundo e no conhecimento estão produzindo uma onda de choque para a universidade e numa onda dessas não adianta nadar: é preciso surfar, e para isso a universidade tem de escolher a prancha mais adequada".

Bevilacqua e Naomar de Almeida Filho, ex-reitor da UFBA e da UFSB, apresentaram no dia 10 de outubro, durante o encontro "A USP diante do Espelho", propostas sobre o que deve ser feito para essa onda ser surfada a contento. Os dois integram o Grupo de Trabalho A USP diante dos Desafios do Século 21, que produziu o documento "USP: Propostas de Agenda para o Futuro", lançado no evento.

Relacionado

Documento

Artigo

Notícias

Midiateca

Discussão pública

Presente nos nomes do grupo de trabalho, do documento e do evento, a USP é tomada como referência, mas as propostas se dirigem a todas as universidades brasileiras. O trabalho é uma espécie de "livro verde" (relatório com apresentação de propostas para discussão pública) para a área no país. Bevilacqua ressaltou que não há solução única para as universidades, por isso o documento está aberto a sugestões e modificações.

As principais propostas para a USP contidas no trabalho são: criar um bacharelado interdisciplinar em ciências; organizar novas unidades acadêmicas na forma de centros interdisciplinares; adotar iniciativas que permitam a melhoria do ensino médio, como a criação de uma Academia Juvenil; liderar a criação do Brazil Ranking of World Universities, uma classificação internacional de universidades de pesquisa com critérios ajustados à realidade e interesses do Brasil e outros países do Hemisfério Sul; assumir papel significativo na reformulação necessária de critérios do CNPq, Capes e outras agências de fomento; e criar um Fórum Permanente de Educação, Ciência e Tecnologias com a participação de representantes da indústria e dos Poderes Executivo e Legislativo.

O grupo propõe duas ações específicas para o IEA nesse processo de transformação:  a criação de cursos de verão sobre temas amplos relativos à realidade nacional, mas de interesse acadêmico geral, e de cátedras de estudos estrangeiros, em cooperação com o Instituto de Relações Internacionais, com ênfase nas cadeias de ensino dos países e regiões com quem a USP mantém maior intercâmbio.

Além de Bevilacqua e Almeida Filho, também participam do grupo de trabalho responsável pelo documento outros oito pesquisadores da USP envolvidos com o debate sobre o ensino superior brasileiro: Arlindo Philippi Jr., Caio Dantas, Elizabeth Balbachevsky, Eugenio Bucci, Guilherme Ary Plonski (vice-diretor do IEA), Henrique von Dreifus, Paulo Saldiva (diretor do IEA) e Roseli de Deus Lopes.

O encontro teve quatro horas de intenso debate, com a presença de representantes da USP, Unesp, Unifesp, UFABC e outras instituições. As discussões ressaltaram a importância de várias das propostas e de como as transformações na USP podem repercutir no resto do país em função do papel de liderança da universidade. Houve questionamentos também, como a afirmação de que várias das medidas propostas já estão em curso na USP, a necessidade de as humanidades terem maior espaço na reflexão sobre as mudanças e a defesa de que outras universidades também sejam protagonistas na elaboração de propostas.

O primeiro painel foi dedicado às "Transformações Contemporâneas do Ensino Superior" e abordou três aspectos: autonomia e internacionalização; modelos de formação; e desafios do século 21. O segundo teve o tema "Pontos Críticos, Desafios e Propostas para a USP", com análises sobre: avaliação e excelência; conexões com a sociedade; e a universidade no mundo digital.

Comentários

Além de Bevilacqua e Almeida Filho como expositores, o encontro teve a participação de sete comentaristas: José Goldemberg , ex-ministro da Educação e ex-reitor da USP; Soraya Smaili , reitora da Unifesp; Renato Janine Ribeiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e ex-ministro da Educação; Simon Schwartzman, do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Ites); Adelaide Faljoni-Alario, da UFABC e coordenadora-adjunta da Área Interdisciplinar da Capes; Elizabeth Balbachevsky, da FFLCH-USP; e Eugenio Bucci, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Elizabeth e Bucci também participaram da produção do relatório.

No que se refere a USP, Goldemberg afirmou faltar no documento a concepção de que o avanço depende da melhoria dos pesquisadores e consequente incremento da produção científica de impacto. Disse que a universidade brasileira é vista como fornecedora de suprimentos: "Ela recebe pouca demanda em geral e a demanda industrial é baixíssima." Ele discorda da reivindicação de mais recursos, algo "impatriótico diante das necessidades de outras áreas, como saúde e segurança pública". A internacionalização, em seu entender, é natural "quando se é bom e se descobre algo importante".

A USP diante do Espelho - Painel 2
Painel 2 - Pontos Críticos, Desafios e Propostas para a USP -, com (a partir da esq.) Luiz Bevilacqua, Adelaide Faljoni-Alario, Renato Janine Ribeiro, Eugênio Bucci e Simon Schwartzman

Elizabeth destacou que a internacionalização é central para uma universidade, mas deve ser mais do que enviar e receber alunos. "O ponto central é a mescla com redes globais de produção e circulação de conhecimento."

Outro aspecto enfatizado por ela é a necessidade de "ceder parte da autonomia e aceitar uma cogovernança externa". Para isso, ela propõe a incorporação de um board of trustees [conselho de gestão] que represente setores da sociedade interessados na atuação da universidade. Destaca, no entanto, que esse board "não pode ser só consultivo, mas ter a capacidade de orientar os rumos da universidade, caso contrário a lógica corporativa se torna dominante".

Para Schwartzman não se deve levar em consideração apenas as universidades de pesquisa como a USP. "Deve-se falar em sistema de ensino superior, que inclui também outros tipos de instituições de ensino, o ensino a distância e outras atividades." Ele considera que faltou ao documento uma reflexão sobre o papel da USP nesse contexto. "Falou-se da Maria Antonia [sede da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de 1949 a 1968], mas ninguém mais é Maria Antonia no mundo. Uma universidade moderna tem escolas pesadas de engenharia, tecnologia etc." E indagou sobre qual deve ser o papel da USP: "Ela é fundamentalmente de pesquisa ou faz também outras coisas?".

"O negócio de uma instituição universitária é o talento", afirmou Schwartzman. Para fazer uma política direcionado pelo talento "é preciso pagar o que o mercado internacional paga". Não se deve esquecer, comentou, que universidades como a USP integram o serviço público, "o que torna a política de pessoal extremamente rígida, com um sistema arcaico de seleção via concurso". Defendeu a adoção de um sistema misto de contratação de pesquisadores, ao qual seria acrescentada a atuação de comitês de busca.

Humanidades

Bucci questionou se "o paradigma da ciência resolve a questão da universidade". Para ele, é preciso uma instância que reflita sobre a ciência. "Esse lugar talvez seja a filosofia. Ela deve ser incluída quando discutimos indicadores e qualidade da universidade."

As relações entre ciência e democracia também foram lembradas por ele: "Nosso documento faz menção às pretensões da China em assumir a liderança científica. A ciência é compatível com um regime não democrático? A conduta e o debate científicos prosperam sem democracia?".

Janine disse que a pergunta de Bucci sobre o papel a ser cobrado da filosofia leva à questão das diferenças próprias das humanidades. "Quando se vê um documento como esse, o caminho para as ciências e engenharias está mais ou menos definido, só faltam ajustes. Mas quando colocamos a questão das ciências humanas, fica complicado." Para ele, a internacionalização das humanidades é algo mais trabalhoso. "Nelas, não se escreve um paper com 850 palavras. E há o problema da produção na língua local."

Janine comentou também que "falta atrevimento" à comunidade de ciências humanas, com a carência de perguntas globalizantes para aglutinar pesquisadores. Um exemplo de trabalho com questões desse tipo seria, em sua opinião, investigar como a educação pode ser usada para a redução da desigualdade.

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP