Para superar a separação em disciplinas

por Nelson Niero Neto - publicado 01/08/2019 18:05 - última modificação 11/06/2020 06:35

Uma abordagem por áreas para a formação de professores pode impulsionar também trabalhos menos fragmentados dentro das salas de aula da Educação Básica
Pontos-chave
  1. A ideia de transdisciplinaridade significa um olhar para grandes questões, que envolvem, por sua natureza, aspectos de diversas áreas do conhecimento.
  2. O trabalho transdisciplinar envolve a abordagem de ideias fundamentais: explicáveis de maneira simples, relacionadas a muitos outros conteúdos e que transbordam para além de uma única disciplina.
  3. O trabalho com situações em contexto pode ser um ponto de partida para despertar o interesse dos estudantes por essas ideias fundamentais.
  4. A formação de professores por áreas tem como objetivo combater a fragmentação do conhecimento em disciplinas, que é oposta ao conceito de transdisciplinaridade e ainda está muito presente nas escolas.

Por Rodrigo Ratier e equipe

Para promover a Educação Integral é preciso superar a fragmentação do conhecimento nas escolas e na formação dos professores. Essa foi a principal mensagem da palestra "Formação por Área: Uma Visão Transdisciplinar" dada pelos professores Nílson José Machado e Luís Carlos de Menezes durante o terceiro encontro do Ciclo Ação e Formação do Professor, organizado pela Cátedra de Educação Básica da USP.

Os dois palestrantes discutiram sobre como superar a separação entre áreas e disciplinas que acontece no Ensino Superior e se reflete no Ensino Fundamental e Médio. "A escola básica é recente e as universidades são milenares. E divisão de conhecimento específico vem de cima para baixo", explica Menezes.

Interações entre disciplinas

As propostas de conexão entre diferentes componentes curriculares não são novidade. Machado faz uma diferenciação entre os conceitos de inter, multi, intra e transdisciplinar organizando em dois eixos. O primeiro, horizontal, trata da força das relações entre as disciplinas. Em uma das pontas, está o conceito de multidisciplinaridade, em que as interações entre as disciplinas são poucas e fracas, muito pontuais. "A escola sempre foi multidisciplinar. Então, tem muitas disciplinas. Muitas pode ser três, quatro, sete, dez, treze. Mas isso não é um problema", explica o professor.

Clique aqui para baixar a apresentação da palestra

Clique aqui para ver o vídeo da palestra na íntegra
Clique aqui para baixar o livreto com os relatos de todos os eventos do ciclo

Desde a década de 1970, cresceu fortaleceu-se a defesa da outra ponta desse eixo, a interdisciplinaridade, em que há mais interações entre as disciplinas. "O discurso da interdisciplinaridade é o discurso das inter-relações entre diversas disciplinas que, em geral, são inter-relações pobres", diz. Ela se dá, por exemplo, quando História e Matemática realizam alguma atividade juntas, ou Ciências e Língua Estrangeira, e assim por diante.

Já o eixo vertical vai da intradisciplinaridade à transdisciplinaridade e diz respeito à dimensão do objeto que é foco de estudo. Na lógica da intradisciplinaridade, há uma especialização crescente. "Sabe-se cada vez mais sobre cada vez menos", diz Machado. Um reflexo desse fenômeno está, por exemplo, na criação de disciplinas que focam em um tópico específico de disciplinas maiores. Para o pesquisador, a especialização em si não é um problema, mas ela deve sempre se dar em articulação com objetos de estudo maiores. "O especialista, hoje, é alguém que se interessa por pormenores, mas que está vendo uma foto. Ele olha pra foto e aí põe uma lupa no cantinho da foto e vê pixels, vê coisas miúdas. Mas o significado, o interesse, o que chama a atenção é a foto inteira", destaca. Já a transdisciplinaridade olha para objetos maiores e mais complexos e, ao fazer isso, é impossível fugir da colaboração entre diversas disciplinas.

Foco nas ideias fundamentais

A realização de um trabalho transdisciplinar, segundo Machado, é mais fácil quando os temas abordados são o que ele chama de ideias fundamentais. "Nós perdemos o discernimento na distinção do que é fundamental, absolutamente necessário, básico, imprescindível e o que é penduricalho, acessório", diz.

Pergunta da plateia

Qual a importância do contexto no trabalho do professor?

Os contextos são fundamentais para gerar os centros de interesse e, com base neles, temas de diversas disciplinas podem ser abordados. "Se um gato pula, ele conserva a quantidade de movimento, conserva energia e, ao mesmo tempo é um gato, é um bicho", exemplifica Luís Carlos de Menezes. Mas os contextos podem ser pontos de partida para que as discussões em sala de aula cheguem às abstrações. "O contexto pode ser uma prisão. Muitas vezes, a demonstração de competência, de inteligência, de conhecimento, de sabedoria, está na ultrapassagem do contexto", afirma Nílson Machado.

Há três características que ajudam a estabelecer se uma ideia é fundamental. A primeira delas é a possibilidade dela ser apresentada de maneira simples, em linguagem ordinária. "Se eu já preciso de uma linguagem técnica, sofisticada, para poder explicar o significado ou a importância de um assunto, ele já não é fundamental", afirma o palestrante.

A segunda característica é a quantidade de relações que é possível estabelecer entre esse tema e outros. Se não houver, mau sinal. "Você pode gostar, ler, explorar e até trabalhar com ele em sala de aula, mas ele não é fundamental", diz Machado. A última propriedade é o transbordamento. "Se eu exploro, falo, converso sobre uma ideia que seja fundamental é inevitável que eu fale de outras matérias", define o especialista.

É justamente esta última a característica que mostra a importância das ideias fundamentais para trabalhos transdisciplinares. Um exemplo clássico é a ideia de energia. De modo simples, ela pode ser produzida como a capacidade de produzir movimento, se conecta com temas como o estudo dos movimentos, das formas de produção de energia e tem interface entre diferentes áreas, como a química (no estudo das pilhas, por exemplo), a geografia (na exploração de diferentes matrizes energéticas) e na biologia (com a ideia da produção de energia dentro das células).

A proposta de realizar a formação de professores por áreas de conhecimento é justamente uma tentativa de reaproximar disciplinas em uma proposta transdisciplinar, que se atenha às ideias fundamentais de cada área e nos desdobramentos delas em cada disciplina. "A organização por área é a tentativa de a gente consertar o que já está desgraçado", diz Machado.

Experiência transdisciplinar

O professor Luís Carlos de Menezes trabalhou como coordenador de um curso de graduação de professores que tinha como proposta preparar educadores para lecionar em áreas. Em vez de licenciaturas em Física, Química e Biologia, a instituição preparava para um único curso de Ciências da Natureza. O mesmo acontecia com as Ciências Humanas, a Matemática e a área de Linguagens.

Quem é Nílson José Machado
Leciona na Universidade de São Paulo desde 1972. Começou trabalhando no Instituto de Matemática e Estatística, e, em 1984, passou a integrar o corpo docente da Faculdade de Educação, onde é professor titular. Além de matemático, é mestre e doutor em filosofia da educação e livre-docente na área de epistemologia e didática. Escreveu cerca de duas dezenas de livros para crianças e publica microensaios semanais em seu site pessoal.
Quem é Luís Carlos de Menezes

Doutor em Física pela Universidade Regensburg, é Professor Sênior do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. Membro do Conselho Estadual de Educação em São Paulo. Consultor da UNESCO para propostas curriculares. Membro do Conselho do Prêmio Jabuti de Literatura, junto à Câmara Brasileira do Livro. Assessor do Ministério da Educação para a elaboração da Base Nacional Curricular. Principais focos de trabalho em educação, currículos para a educação básica, formação de professores e ensino de ciências.

"A alma da transdisciplinaridade é o contexto. É o contexto que junta as disciplinas", afirma Menezes. Na experiência apresentada por ele, aspectos ligados a contexto guiavam a elaboração do currículo. É o caso da disciplina "Terra: Estrutura, Composição e Formação", presente no quarto ano da licenciatura em Ciências da Natureza. "Terra é contexto. Então, os aspectos geológicos, astronômicos, etc, serão trabalhados também com o contexto", explica Menezes. Os aspectos contextuais ajudam a formar o que Machado chama de centros de interesse. "Alunos naturalmente interessados nas ideias fundamentais existem, mas são raros. São animais em extinção. A gente precisa preparar para isso. E a preparação é a criação de centros de interesse", afirma.

Além da proposta de formação estruturada áreas, o curso coordenado por Menezes também apostava na integração entre a graduação e a Educação Básica pela criação de uma residência educacional. "Desde o primeiro ano, eles participam de um estágio supervisionado com cem horas semestrais. Eles iam às escolas e acompanhavam o trabalho nas escolas como copartícipes", afirma Menezes.

A ideia da formação por áreas também tem como objetivo aproximar os futuros educadores de abordagens mais próximas ao cotidiano escolar. "Você vai vai formar um piloto, que tem que pilotar um avião. Ele pode ter alguma instrução teórica, mas eu não entraria num avião em que o piloto apenas assistiu aula de pilotagem, ouvindo falar ou projetar num quadro", conclui o especialista.