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Cidades afetivas: Advocacy como uma via convivialista na direção do bem viver

por admin - publicado 28/04/2020 13:49 - última modificação 28/04/2020 13:49

Por Vivian Aparecida Blaso Souza Soares César, com supervisão de Suzana Pasternak

Por Vivian Aparecida Blaso Souza Soares César, com supervisão de Suzana Pasternak

 

“Precisamos mudar o mundo.”

Edgar Morin

A concentração populacional nas áreas urbanas é responsável por 70% das emissões de gases do efeito estufa e consome 75% da energia e dos recursos do mundo, de acordo com a ONU[1] – Organização das Nações Unidas. Além disso, até 2050 duas em cada três pessoas viverão nos centros urbanos, o que corresponde a 2,5 bilhões de pessoas.

Esse cenário urbano, que está inserido na quarta revolução industrial, transformou nossos modos de viver e habitar as cidades. Impactadas pelas novas tecnologias, avanços científicos e novas configurações de modelos de trabalho, produção e consumo de bens e mercadorias vêm transformando campos como Inteligência Artificial, Internet das Coisas, Robótica, Nanotecnologia, Biotecnologia, Materiais, Cidades, Governos, e o conceito smart já está integrado à nossa vida.

Esse conceito modificou a maneira como nos deslocamos, com o uso de aplicativos como o Uber, e os processos cada vez mais digitais vão delineando a vida cotidiana dos habitantes das cidades. Essas são mudanças tão profundas que transformaram até mesmo a maneira como percebemos a vida.

As smart cities, ou cidades inteligentes, projetam ideários de uma vida governada pelo uso das tecnologias na ponta dos dedos, em que seus usuários seriam capazes de obter mais qualidade de vida, equidade, segurança e acessibilidade. As cidades smarts prometem uma via verde/ecológica/sustentável ao capitalismo, que lhes permita continuar funcionando vinte e quatro horas por dia, sete dias na semana.

As promessas de uma vida smart não têm refletido a realidade global dos enfrentamentos das condições essenciais para o funcionamento das cidades contemporâneas, como saneamento, acesso à rede de transporte público de massa, áreas verdes, moradia, empregos.

Saskia Sassen (2017) nos diz que estamos atravessando um processo de indiferenças, com as mais variadas formas de expulsões, que vêm ocorrendo acentuadamente desde o final do século XX e, provavelmente, perdurarão ao longo do século XXI. A lógica das expulsões acaba acentuando as desigualdades de todas as ordens: econômicas, sociais, ambientais e culturais.

Faces de um mesmo fenômeno e alvos das preocupações na busca por uma governança global, é preciso atentar para as questões que envolvem as cidades. Os desafios estão postos e requerem atenção redobrada sobre a vida do homem contemporâneo, principalmente nas cidades globais, que são ao mesmo tempo geradoras de oportunidades, riquezas e inovações, mas concentram altas taxas de desemprego e problemas de escala ecológica, política e social.

A sociedade do século XXI foi retratada por Byung-Chul Han (2015) como a Sociedade do Cansaço. Nela, os sujeitos do desempenho, de alta performance e rendimento no trabalho, são levados pela Sociedade do Cansaço à depressão e ao fracasso, afinal a competitividade e a meritocracia não garantem que todos subam ao pódio. Han nos mostra que o cansaço desses indivíduos afasta o eu do outro, impedindo o Homo urbanus de viver em comunidade. A convivialidade parece impossível de alcançar.

O conceito de smart cities está ancorado na lógica do desempenho. O ímpeto é pela quantificação, liderado por rankings e pontuações para atração do capital financeiro, com o intuito de encorajar investimentos. Esses ideários austeros de cidades não dialogam com perspectivas biocêntricas, com ênfases em soluções baseadas na natureza. O que está em jogo é a vigilância, a produção de dados e de indicadores para a mensuração de resultados que por vezes não levam em conta a participação cidadã dos seus usuários, tampouco as questões que envolvem o bem viver nas cidades.

No livro A Cidade Inteligente. Tecnologias Urbanas e Democracia, Evgeny Morozov e Francesca Bria (2019) nos encorajam a refletirmos sobre o componente city do conceito das smarts cities – “despidas de toda política e de vozes de contestação, essas narrativas celebram a marcha inexorável do progresso e da inovação, bastante acelerada pela inventividade do setor privado” (p. 24).

A vida afetiva procura brechas, conexões, saídas possíveis para o destino da humanidade. Ao mesmo tempo, a vida em aplicativos e em conexão nas redes sociais amplificou o fenômeno dos coletivos na cidade de São Paulo e possibilitou uma reorganização da vida em redes.

Nas praças, nos parques, nas hortas comunitárias, as redes sociais encurtaram as distâncias e facilitaram a organização desses coletivos, que, também de maneira horizontal, vêm performando e atuando na direção de práticas comunitárias, devolvendo às cidades o lugar da festa, do acontecimento, como mencionado pelo historiador Jacques Le Goff.

No Manifesto dos Convivialistas, Edgar Morin nos mostra a importância da convivialidade na sociedade como um novo caminho que nos leve à metamorfose, em que tudo pode mudar. É a aposta na arte de viver juntos (con-vivere), que habilita os humanos a cuidar uns dos outros e da natureza, sem negar a legitimidade do conflito, mas fazendo dele um fator de dinamismo e de criatividade. Um meio de evitar a violência e as pulsões de morte.

Os coletivos são agrupamentos fluidos, horizontais, constituem uma nova forma de organização da sociedade e reivindicam direitos, cobram deveres e lutam por questões que têm por objetivo algo em comum. Correspondem aos novíssimos movimentos, conforme descritos por Gohn (2017) em Manifestações e protestos no Brasil, correntes e contracorrentes na atualidade.

O “comum” não é apenas um tema de oposição. Este novo sentido traz como princípio o autogoverno democrático a partir de lutas ativistas, com base na atuação desses novíssimos movimentos denominados coletivos.

Os movimentos e coletivos, ligados reinvindicação das áreas verdes em São Paulo tais como; Hortelões Urbanos, Coletivos dos Moradores nos Ecobairros Vilas Jataí, Ida e Beatriz – Vilas Beija, Parque do Bixiga, Parque Augusta, vêm sendo observados desde 2016 por meio de processos etnográficos no “Cidades Afetivas”, um observatório dos movimentos afetivos que ocorrem nas cidades e têm como propósito compreender, por meio das atuações dos coletivos e suas mediações, as produções de novas sociabilidades, as influências em políticas públicas e as novas formas de viver e ocupar a cidade.

É importante ressaltar que o artigo publicado no Dossiê Temático do Programa Cidades Globais no IEA USP, “Um novo ecossistema: florestas urbanas construídas pelo Estado e pelos ativistas” (LOCOSSELLI et al., 2019), afirma que a restauração dos ecossistemas nas cidades é uma medida eficaz para reverter processos de degradação ambiental resultantes da urbanização. “Em São Paulo, devido a sua biodiversidade de espécies pertencentes à Mata Atlântica, a combinação de grupos de espécies de acordo com os seus serviços ecossistêmicos pode maximizar o uso das florestas urbanas como soluções para os desafios ambientais urbanos (Buckeridge, 2015).”

Nessa perspectiva, as pautas dos coletivos que vêm atuando na cidade de São Paulo reivindicando áreas verdes urbanas caminham juntas na direção da mitigação das mudanças no clima.

A lacuna existente entre as políticas públicas e movimentos nas lutas pelo direito à cidade tem se tornado cada vez mais recorrente na mídia e nas redes sociais e pode ser observada na atuação desses coletivos na cidade de São Paulo.

Mesmo na atuação desses coletivos, os mecanismos de comunicação e mobilização da opinião pública ainda são incipientes diante das reivindicações da sociedade que demandam ações urgentes que contribuam com proposição e inclusão de políticas públicas que proporcionem às cidades condições de enfrentar os fenômenos pós-globalização.

O Advocacy possibilita defender uma causa, chamar atenção e promover e influenciar políticas públicas. Advocacy é o ato de advogar exercido pelas organizações sem fins lucrativos, ou grupos, quando defendem interesses comuns, tentam influenciar alguma transformação na sociedade, algum comportamento ou até mesmo para empregadores mudarem regras, e os governos, as leis.

Observar as atuações e performances desses coletivos pela perspectiva do Advocacy em feitos inéditos, como a criação do Parque Augusta, em que um projeto privado foi transformado em um bem público para a população da cidade de São Paulo, em conformidade com  a Lei Municipal 15.941/2013, da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), e o Projeto de Lei 805/2017, que determina a implementação do Parque Bixiga na região central de São Paulo, ainda aguardando sanção pela prefeitura, abre caminhos para amplificar as dinâmicas participativas da sociedade civil na implementação de políticas públicas.

Advocacy como ferramenta de implementação de diálogos entre os setores públicos, privados e os cidadãos para mediação de interesses comuns como ar, água, áreas verdes contribuirá com políticas públicas que possibilitem às cidades globais espaços mais conviviais e afetivos, levando em consideração os “Objetivos do Bem Viver”.

Os Objetivos do Bem Viver − OBV[2] distinguem-se das noções consolidadas de desenvolvimento econômico, social e ambiental presentes nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – ODS. Distantes da ideia de desenvolvimento, os OBVs podem contribuir efetivamente para a sustentabilidade da vida e do planeta. O Bem Viver não é mais uma alternativa de desenvolvimento em relação aos já existentes, mas uma via ecológica e biocêntrica baseada na promoção conjunta dos Direitos Humanos e dos Direitos da Natureza.

O Bem Viver também está no Brasil com o TEKO PORÃ, ou NHANDEREKO, dos povos guaranis. TEKO refere-se à vida e à existência em comunidade e PORÃ significa belo, bonito, bom. NHANDEREKO significa “nossa forma de vida”. Essa cosmovisão está presente na cultura guarani, e assim uma lógica de não separação entre natureza e cultura, homem e meio ambiente, que tem como pressuposto uma vida harmônica pautada pela vida em comum, é realizada.

As cidades afetivas investem em novas formas de convivialidade, como o slow food, os coletivos artístico-culturais, a economia solidário-colaborativa, os mandatos coletivos na política, todos em sintonia com os novos ideários, que reivindicam uma vida ecologizada para devolver às cidades a função política de ser um espaço coletivo para o bem viver.

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Por Vivian Aparecida Blaso Souza Soares César

Pesquisadora no Pós Doutorado no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo – Programa USP Cidades Globais – Idealizadora do Cidades Afetivas. Doutora em antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em Comunicação Social – Relações Públicas, é Professora na FAAP. Tem experiência nas áreas na área de Comunicação, com ênfase em Relações Públicas e Propaganda, atuando nos seguintes temas: consumo e sustentabilidade, responsabilidade social empresarial, tendências, governança corporativa, advocacy, relacionamento com a comunidade e terceiro setor, consumo responsável, comunicação, cidades, antropologia urbana, ativismos e coletivos. Autora do livro Cidades em Tempos Sombrios. Barbárie ou Civilização. Pesquisadora no Complexus – Núcleo de Estudos da Complexidade na PUC/SP.

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BELL, Karen. The Centre for Urban and Public Policy Research, School for Policy Studies, University of Bristol, Bristol, BS8 1TH, UK. Living Well’ as a Path to Social, Ecological and Economic Sustainability, Urban Planning 2017, Volume 2, Issue 4, pages 19–33.

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_____________. Análise de políticas públicas no Brasil: de uma prática não nomeada à institucionalização do “campo de públicas” Rev. Adm. Pública — Rio de Janeiro 50(6):959-979, nov./dez. 2016

GOHN, Maria da Glória. Manifestações e protestos no Brasil: correntes e contracorrentes na atualidade. São Paulo: Cortez, 2017.

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[1] ONU – Organização das Nações Unidas: https://nacoesunidas.org/onu-mais-de-70-da-populacao-mundial-vivera-em-cidades-ate-2050/

[2] Los Objetivos del Buen Vivir. Una propuesta alternativa a los Objetivos de Desarrollo Sostenible.