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América do Sul, mudanças climáticas e desastres: o que fazem os nossos vizinhos?

por admin - publicado 22/03/2024 10:50 - última modificação 01/04/2024 16:19

por Maria Cecilia Lucchese (*) e Arlindo Philippi Jr (**)

Desastres naturais hoje nos remetem às mudanças do clima, uma vez que eventos extremos vem se tornando bastante frequentes nos últimos cinco anos. Se há alguns anos, pouco se relacionava desastres naturais ao aquecimento global, hoje a associação está na mídia, nas redes sociais e nas conversas do cotidiano, ainda que existam aqueles que argumentam que desastres naturais sempre existiram, que são parte da natureza. Sim, eventos extremos naturais sempre existiram, e existem aqueles sobre os quais, pelo que a ciência sabe até hoje, não temos qualquer influência, como terremotos ou a atividade vulcânica. O mesmo não podemos dizer de inundações, deslizamentos de encostas e solapamento de margens de rios.

Do que se fala quando especialistas citam desastres naturais? Segundo o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (CENAD), órgão vinculado à Secretaria Nacional de Defesa Civil (SEDEC), do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, desastre é o “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem sobre um cenário vulnerável, causando grave perturbação ao funcionamento de uma comunidade ou sociedade, envolvendo extensivas perdas e danos humanos, materiais, econômicos ou ambientais, que excede a sua capacidade de lidar com o problema usando meios próprios” (BRASIL, 2012:7).

E os desastres são naturais?  Vários pesquisadores vêm há bastante tempo questionando o adjetivo “natural” para desastres, fazendo uma distinção entre “hazards”, onde os mecanismos físicos, distribuição espacial e temporal ou sua eclosão tem maior peso, e “desastres” que tem uma abordagem sociológica, que enfatiza a organização social e o comportamento coletivo (GRANADO, 2020, MASKREY, 2023). Distinção bastante importante, se considerarmos principalmente os desastres em áreas urbanas, onde eventos naturais não podem ser considerados como sendo somente “naturais”, pois também têm suas causas vinculadas à forma social de ocupação do território. Nega-se aqui, portanto, a noção que a natureza é assim mesmo, de que desastres são inevitáveis, clama-se pela proposição de soluções territorialmente específicas (como agir para remover pessoas de área de risco) e pela proposição de soluções mais amplas, como agir para evitar o aumento ainda maior da temperatura do planeta, que leva a maior frequência de eventos extremos.

O CENAD, inspirando-se nos critérios do Centre for Research on the Epidemiology of Disasters - CRED da Universidade de Louvain – Bélgica, considera como desastre eventos com um ou mais mortos, ou cinquenta ou mais afetados, ou que tenha suscitado as declarações de Situação de Emergência ou de Estado de Calamidade Pública (BRASIL, 2012). Isso restringe o que se chama de desastres, ainda que, para o CRED, cuja base de dados internacional é bastante utilizada em pesquisas da área, o número de mortes deva estar entre dez ou mais mortos, ou cem ou mais afetados, ou que tenha suscitado declaração de emergência ou ainda que tenha levado à solicitação de ajuda internacional. (GRANADO, 2020)

Determinados eventos, como o hidrológico (inundações, enxurradas, alagamentos), o meteorológico (sistemas de grande escala/escala regional, tempestades, temperaturas extremas) e o climatológico (seca severa) (Classificação e Codificação Brasileira de Desastres - BRASIL, 2012), têm estreita relação com o clima do planeta. São eventos cada vez mais frequentes, que se relacionam com as condições climáticas locais, por sua vez relacionadas às condições climáticas globais, que são influenciadas pelo aumento da temperatura do planeta.

O acordo de Paris (COP 21) estabeleceu como meta para países membros, buscar limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, mas já em 2023, durante a COP 28, foi anunciado que a temperatura já chegara a 1,6° C naquele ano, e posteriormente soube-se que para 2023 o aumento foi 1,8°C (Emissions Gap Report 2023 – UN), acima portanto do buscado, uma vez que o aumento em 1,5°C, já é considerado bastante preocupante em seu significado de alteração das condições climáticas. É, portanto, necessário preparar as cidades, pois os eventos climáticos vão aumentar em frequência e intensidade e haverá maior probabilidade de perda de vidas e bens materiais.

O Brasil, como um país continental, é atingido ao mesmo tempo por eventos extremos diversos, em diferentes regiões, eventos que não atingem somente o Brasil, mas outros países da América do Sul. Ainda que isso seja óbvio, uma vez que as divisas do país não são divisas climáticas, para o senso comum os desastres parecem ser uma exclusividade nossa, já que quase não há repercussão de desastres em países vizinhos na midia brasileira, ou de possíveis ações de cooperação sul-americana no que se refere à gestão e ao enfrentamento dos desastres naturais.

O EM-DAT- The International Disasters Database, organizado pelo CRED, (ainda que tenha dados incompletos devido à metodologia de coleta), nos dá um quadro bastante amplo da ocorrência de desastres na nossa América. Dados entre 2000 e 2023 totalizam 607 desastres no continente (hidrológico, meteorológico e climatológico), com 13.418 mortes e um pouco mais de 86 milhões de afetados, cerca de 20% da população sul-americana para o ano de 2016.

Em média, houve cerca de 22 mortes para cada evento, sendo que Brasil, Colômbia e Peru têm taxas bem mais altas (26,77; 30,30 e 42,90 respectivamente), enquanto Chile, Argentina e Uruguai, todos com mais de 25 casos, tiveram taxas bem mais baixas (8,57; 5,26 e 1,18 respectivamente). O que explica essa diferença?

Os cinco anos com o maior número de casos são 2022 (49 casos), 2021 (45), 2019 (39), 2023 (37) e 2002 (34), mostrando um acentuado aumento nos últimos anos. Nesses países o evento mais comum foi inundação (hydrological flood), que junto com deslizamento, são os que causaram o maior número de mortes, com exceção do Peru (onde ocorreram ondas de frio em 2009 e 2010). Número elevado de mortos e afetados coincide com eventos ocorridos em áreas urbanas, enquanto eventos em área rural ou florestas têm maior impacto de ordem material e perda de biodiversidade. É possível desenvolver ações conjuntas? Quais são as respostas dadas por cada país?

Para os anos com maior número de casos, verificou-se que alguns eventos coincidem no tempo. Ao sul do continente (Argentina, Uruguai e Brasil), houve ocorrência de enchentes no mês de janeiro de 2019 em municípios destes três países, na bacia do Rio Uruguai. Elas ocasionaram oito mortes e 46.878 afetados, destes, a maioria na Argentina. Em 2022, uma seca severa nos primeiros meses do ano, afetou os três países, em um território que compreende as bacias dos rios Uruguai e Paraná. Neste caso o número de afetados na Argentina e Uruguai foi de 533.200 pessoas (não havia dados de afetados no Brasil).

A área central do continente (Brasil, Paraguai e Bolívia), entre agosto e setembro de 2019, foi afetada por incêndios florestais, ocorrendo na região centro-norte do Paraguai, centro e centro-sul da Bolívia, e sudoeste da Amazônia. Houve mais de 10 milhões de pessoas afetadas, a maioria no Brasil. Já em 2021, fortes chuvas, iniciando-se entre os dias 31 de janeiro e 10 de fevereiro, numa sequência de Paraguai, Bolívia e Acre. Houve 25 mortes, a maioria no Paraguai e 247.000 afetados, a maioria na Bolívia. É necessário dizer que a EM-DAT quase não tem registros de dados dos estados do Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Goiás, e isso prejudica essa análise.

Na região amazônica, nos países que abarcam o bioma (Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa), também foram encontradas algumas coincidências, apesar da imensa extensão desse território. O número de eventos registrados em cada país é bastante grande, excetuando-se Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa. Os três últimos relataram pouquíssimos eventos nesses vinte e três anos, o que pode ser atribuído à possível inexistência nesses países de órgãos de gestão climatológica ou então, ao fato de serem países menos urbanizados, e os eventos acabarem não tendo maiores consequências às populações ou de estragos materiais. Já a Venezuela tem um bom número de eventos, mas bem menor do que os registrados nos outros países, o que de certa forma parece ser contraditório.

Para essa região, dados mostram que os incêndios florestais de 2019 (já relatados aqui), também atingiram o Peru na mesma época, ainda que não seja possível neste último país precisar a localização. Em 2021, com início entre os dias 20 e 27 do mês de março, aconteceram inundações em áreas do oeste da região amazônica, atingindo Brasil, Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela. Esses eventos, de cunho hidrológico, não se deram em territórios contíguos, nem numa mesma microbacia hidrográfica, mas são fruto provavelmente de um mesmo fenômeno climático, já que as inundações foram consequência de chuvas extremas (heavy rain). Atingiram cerca de 480.000 pessoas. E em março de 2023, com início entre os dias 16 e 27, fortes chuvas caíram no Brasil (estados do Pará, Amazonas e Acre), e na Bolívia (Departamentos de Santa Cruz e Pando), eventos que atingiram cerca de 28 mil pessoas[1].

Se eventos extremos e desastres acontecem em todo o continente e alguns também no mesmo período, como vimos, é importante indagar se, e de que forma, estamos cooperando em termos regionais para aumentar a resiliência a eles. Nossas cidades têm problemas semelhantes, grandes superfícies urbanizadas e impermeabilizadas, sistemas naturais degradados, metrópoles densas com ocupações precárias assentadas em locais inadequados, populações socioeconomicamente fragilizadas.

Existem experiências de integração para enfrentamento aos desastres, como a região MAP composta pelos departamentos de Madre de Dios (Peru) e Pando (Bolívia), além do estado do Acre (Brasil), na bacia do rio Acre e onde hoje estão ocorrendo grandes inundações. Lá foi implantado um Sistema de Alerta Precoce Trinacional para eventos hidrológicos, meteorológicos e climatológicos, no âmbito de projeto desenvolvido pela Organização do Tratado de Cooperação Amazônica- OTCA (Projeto GEF Amazônia) (PIMENTEL, BROWN, FERREIRA, 2023).

Ou tem-se a realização de workshops internacionais, como o ocorrido recentemente com a participação de especialistas do Brasil, Paraguai e Uruguai e organizado pelo Cemaden – Centro de Monitoramento de Desatres Naturais do Ministério de Ciência e Tecnologia, visando trocar informações sobre modelagem hidrológica. (CEMADEN, 2024)

E também tem-se pesquisadores de vários países sul-americanos, que se organizaram ainda em 1992, para trocar experiências e pesquisas sobre os desastres, sobre a construção social dos desastres. Criaram La Red - La Red de Estudios Sociales en Prevención de Desas­tres en América Latina. Mas, "Até os dias de hoje poucos estudos de risco nos países hispa­no falantes citam investigações e publicações produzidas no Brasil, e vice-versa. Na América há uma espécie de barreira virtual entre o mundo hispano falante e a lusofonia, que persiste no tempo. Tem havido poucos intentos, ao longo dos anos, para atravessar essa fronteira invisível." ­(MASKREY, 2023 : 10/11)

Temos organismos regionais como a União de Nações Sul-Americanas - Unasul (do qual o Brasil voltou a participar em 2023) e o Mercado Comum do Sul - Mercosul, mas que pouco vem discutindo questões ambientais, a não ser as relacionadas as exigências da União Europeia para assinar o acordo multilateral. Estes não deveriam ser também utilizados para trocas de experiências em gestão e enfrentamento de desastres ? Poderia-se organizar encontros e foruns, estabelecer formas de cooperação Sul-Sul, que pode ser mais eficaz do que a usual Norte-Sul, já que estamos no mesmo continente e temos cidades com problemas muito semelhantes.

A emergência climática nos coloca frente a vários desafios, que precisamos enfrentar com presteza, habilidade e economia. Mas não é um problema ou um desafio só nosso. É necessário ampliar a conversa com nossos vizinhos, trocar experiências e buscar soluções conjuntas. Afinal, como enfrentam os nossos vizinhos os eventos extremos ?

Referências

(BRASIL) - Ministério da Integração Nacional. Secretaria Nacional de Defesa Civil. Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. Anuário brasileiro de desastres naturais: 2011 / Centro

Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres. - Brasília: CENAD, 2012.

CEMADEN (sítio) – Últimas Notícias. Especialistas do Brasil, Paraguai e Uruguai discutem a aplicação da I.A. no monitoramento hidrológico. Disponível em: https://www.gov.br/cemaden/pt-br . Acesso em 5 de março de 2024.

GRANADO, Karina - Migrações induzidas por fatores climáticos na América do Sul: os acordos sobre residência dos cidadãos do Mercosul e associados como forma de reconhecimento e integração. São Carlos, 2020. (Tese de Doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade Federal de São Carlos) Disponível em: https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/14094 . Acesso em 5 de março de 2024.

MASKREY, Andrew – Prefácio. In IWAMA, Alan Yu, AGUILAR-MUÑOZ, Viviana e SELEGUIM, Fabiana Barbi (Orgs) VIAND, Jesica e BRENES, Alonso (Coord.) – Riscos ao Sul – Diversidade de Desastres no Brasil. Ubatuba, SP: Isso dá um livro, 2023.

PIMENTEL, Alan dos S., BROWN, Vera R. e FERREIRA, Adriano M. - Monitoramento de ameaças hidrometeorológicas em áreas de fronteira: a contribuição do estado do Acre na gestão de riscos na Região MAP - Departamento de Madre de Dios/ Peru, Estado do Acre/Brasil e Departamento de Pando/Bolívia. In IWAMA, Alan Yu, AGUILAR-MUÑOZ, Viviana e SELEGUIM, Fabiana Barbi (Orgs) VIAND, Jesica e BRENES, Alonso (Coord.) – Riscos ao Sul – Diversidade de Desastres no Brasil. Ubatuba, SP: Isso dá um livro, 2023.

 

Esse texto se refere aos seguintes ODS: 1, 3, 11, 13, 15, 17

 

(*) Professora Doutora do Departamento de Construção Civil do IFSP – Campus São Paulo, Pesquisadora de Pós-doutorado do Centro de Síntese – USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.

(**) Professor Titular da Faculdade de Saúde Pública da USP, Coordenador Institucional do Centro de Síntese – USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP



[1] Esse número no Brasil incorpora afetados no Pará, mas também em municípios do Nordeste. Portanto não é muito consistente.