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Dos Riscos À Sustentabilidade Sistêmica: O Necessário Uso Dos Indicadores Pelos Gestores Públicos

por Beatriz Herminio - publicado 08/07/2022 14:55 - última modificação 08/07/2022 15:07

Por Manuela Prado Leitão, do USP Programa Cidades Globais, e Tadeu Fabrício Malheiros, do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da USP

Por Manuela Prado Leitão, pós-doutoranda do Programa Cidades Globais e assessora técnica no TCE-SP, e Tadeu Fabrício Malheiros, professor do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos da USP


Eventos noticiados no início deste ano de 2022 no Rio de Janeiro e Bahia e, mais recentemente, as chuvas intensas que assolaram o Estado de Pernambuco, deixando aproximadamente 129 mortos, infelizmente não são apenas drásticos, mas se mostram cada vez mais recorrentes (PERNAMBUCO, 2022). Passados 50 anos desde a Declaração de Estocolmo, de 1972, os desafios postos para a conservação ambiental, a redução da vulnerabilidade a desastres e, em especial, o alinhamento de ações ao desenvolvimento sustentável estão longe de cessar.

Na realidade, esses desafios se tornam mais complexos, com o acirramento dos riscos sistêmicos: riscos resultantes da interconexão de sistemas e de outros riscos, verdadeiros “riscos em rede” criados pelos seres humanos, na acepção de Helbing (2013). De modo cíclico, agravam e são agravados pelas mudanças climáticas, desigualdades socioambientais, problemas de saneamento e infraestrutura urbana, sem esquecer, é claro, o aumento da pobreza.

A conclusão de Beck (2002) é bastante precisa ao afirmar que o ser humano se torna vítima dos riscos tecnológicos complexos e difusos por ele mesmo criados. Ou seja, longe de serem resultado da vontade divina, como muito se concebeu ao longo da história, os desastres são resultados da exacerbação de riscos, criados ou aumentados pela ação ou omissão antropogênica, que se materializam pelo advento de um fato, natural ou humano, e que causam danos de relevante importância, muitas vezes irreversíveis e intoleráveis quanto a bens e vidas. São, na acepção de Carvalho e Damacena (2013, p. 27), “cataclismos sistêmicos” e resultam, portanto, da interação entre inúmeras causas e concausas, sendo impossível identificá-los por um único elemento.

O Decreto nº 10.593/20, que dispõe sobre a organização e o funcionamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil, define desastre, em seu artigo 2º, inciso VII, como o “resultado de evento adverso decorrente de ação natural ou antrópica sobre cenário vulnerável que cause danos humanos, materiais ou ambientais e prejuízos econômicos e sociais” (BRASIL, 2020).

Nota-se que o enfrentamento dos riscos de desastres perpassa necessariamente pelo combate às vulnerabilidades. Apesar de o conceito de vulnerabilidade não ser uníssono, ele denota as características de grupos de pessoas, do meio ou dos ecossistemas que acentuam os riscos e, por consequência, tornam-nos mais propensos aos desastres. São exemplos a desertificação de florestas, a precarização das condições de moradia e habitação, o desenfreado uso e ocupação do solo urbano, o aumento da pobreza e da fome, as desigualdades de gênero, de idade e falta de acessibilidade, a inadequada geração e gestão de resíduos sólidos, a precariedade do saneamento, entre outros (CUTTER, 2006, p.72-75, LEITÃO, 2018).

Imperativo, assim, enfrentar as vulnerabilidades e transformá-las em resiliência. Por resiliência, conceito oriundo das ciências não-jurídicas, pode-se compreender “a capacidade que um sistema apresenta de tolerar perturbações sem alterar suas estruturas e identidades básicas” (CARVALHO et al., 2013, p. 59).

Daniel Farber (2012, p.6) descreve o ciclo de gestão do risco de desastre conforme Figura 1:

Diagrama

Descrição gerada automaticamente

Figura 1. Ciclo de gestão do risco (trad. livre)


Segundo esse autor, o direito deve buscar atuar sobre cada uma dessas fases, a fim de mitigar os riscos de desastres. Assim, na fase de mitigação, sua função seria a elaboração de normas regulatórias e políticas públicas de prevenção, com fomento à proteção ambiental, licenciamento de atividades, construção de códigos de conduta etc. A etapa de resposta corresponderia à responsividade emergencial, ou seja, a disciplina do sistema de defesa civil e amparo do governo no momento imediatamente seguinte à ocorrência do desastre, a fim de que seus danos não se alastrem e a normalidade possa ser recuperada o mais rápido possível. As fases de compensação e reconstrução envolvem a reparação integral dos danos e acionamento dos sistemas de seguro, quando existentes. Farber defende, ainda, que a reconstrução é o momento de se repensar o planejamento, revestido do conceito de resiliência, a fim de fortalecer o sistema contra novos riscos de desastres (FARBER, 2012, p.5-7). Seria o correspondente à noção de build back better, estabelecido pelo Marco de Sendai, de 2015.

Sob uma perspectiva ainda mais provocativa, em recente publicação do escritório das Nações Unidas para Prevenção de Riscos de Desastres (UNIDRR, 2022), discorreu-se que os desafios impostos pelos impactos da era do antropoceno demandam mais do que ações responsivas dos setores público e privados para a construção de resiliência. Urge seja adotada também uma postura reflexiva das instituições, seja do ponto de vista individual ou coletivo, sobre a forma de internalizar externalidades e de o seu humano se sentir parte do meio. Isto é, trata-se de gerar uma reflexão sobre seus próprios valores e prioridades, para que seja possível adotar posturas e ações adaptativas em favor de uma melhor qualidade de vida de todos e enfrentar os riscos sistêmicos com uma sustentabilidade sistêmica: a condição que torna os ecossistemas capazes de serem sustentáveis, por meio de suas interações, dimensões interligadas, adaptação e transformação (UNIDRR, 2022). A sustentabilidade sistêmica, permitiria, assim, a mitigação dos riscos e da sua materialização em desastres.

Nesse contexto, cumpre lembrar que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são transversais, interligados e um importante instrumento de planejamento, de perspectiva holística e integrada, que auxiliam tanto no enfrentamento e mitigação das vulnerabilidades quanto na construção de uma sustentabilidade sistêmica, precisamente por gerarem ações e resultados interdependentes.

Integrar os ODS nas políticas públicas implica aos gestores recorrerem a ferramentas que possibilitem o diagnóstico da realidade local e indiquem os rumos a seguir, como melhor direcionar suas decisões para se alcançar a resiliência e aprimorar a sustentabilidade. Uma dessas ferramentas são os indicadores de sustentabilidade.

Os indicadores, segundo Malheiros et al. (2012, p. 35) são “(...) uma medida que resume informações importantes sobre determinado fenômeno. A ideia é que aquilo que está sendo efetivamente medido tenha significado maior do que simplesmente o valor associado a essa medição, sempre dentro da proposta do uso do indicador na tomada de decisão”.

Os autores discorrem sobre a dificuldade encontrada para se medir e avaliar a sustentabilidade. Destacam em suas pesquisas que ao longo de décadas, o foco prevalente no desenvolvimento econômico conferia importância sobretudo a medidas relacionadas ao Produto Interno Bruto (PIB), sendo tal ferramenta relevante, porém insuficiente para medir a própria dimensão econômica. A incorporação das dimensões sociais e ambientais não apenas no conceito de desenvolvimento sustentável, mas também nos indicadores, foi aos poucos aceita e adquirindo relevância com as diversas Conferências internacionais que sucederam a de Estocolmo, assim como a Eco-92, a Rio +20 entre outras.

Não por menos, a Declaração do Milênio das Nações Unidas veio acompanhada da criação do conjunto de 8 objetivos (Objetivos do Milênio) a serem alcançados pelos Estados até o ano de 2015, os quais foram sucedidos pelos ODS, que os reviu e ampliou para 17, todos integrados sob o mote de “não deixar ninguém para trás”, a serem alcançados pelos países até o ano de 2030. Para guiá-los rumo ao alcance desses objetivos, o compromisso internacional se traduziu em 169 metas, a serem mensuradas por 254 indicadores (INSTITUTO, 2022).

A diversidade de indicadores existentes na Agenda 2030 está em harmonia com a afirmação de Malheiros et al. (2012, p.7) no sentido de que é preciso “favorecer a compreensão sistêmica de mudanças”, para melhor identificar “oportunidades e ameaças que poderão contribuir ou emperrar o desenvolvimento a médio e longo prazos” e, sobretudo, abandonar um “modelo fragmentado de decisão” que não mais se alinha com esses compromissos internacionais em prol do desenvolvimento sustentável. No entanto, um gigantesco desafio dada a quantidade de informação  envolvida.

Os indicadores, assim, facilitam estabelecer o diagnóstico no tempo e no espaço para identificar a atuação prioritária dos gestores. Além disso, possibilitam as medições de políticas públicas, seu monitoramento e acompanhamento, isto é, trazem dados concretos sobre os processos e resultados da implementação dessas políticas, planos, programas e ações, indicando, inclusive, quais devem ser os focos de direcionamento da despesa pública e como torná-la mais efetiva aos cidadãos. “Os indicadores facilitam a orientação em um mundo complexo”, como diria Bossel (1999, p.9).

Daí a necessidade de serem identificados os principais usuários desses indicadores, o fortalecimento do papel da comunicação e da informação, além de estabelecer formas de monitoramento de seu uso, já que os próprios indicadores não devem ser estáticos, eis que o próprio conceito de sustentabilidade é dinâmico e periodicamente aprimorado (MALHEIROS et al., 2012).

Um exemplo de indicador desenvolvido especificamente para os governos municipais sobre as políticas públicas sobre diversos aspectos de sustentabilidade, é o Índice de Efetividade da Gestão Municipal – IEG-M, desenvolvido pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e difundido para todos os municípios brasileiros por intermédio dos demais Tribunais de Contas estaduais no país.

Coletado e validado anualmente, o IEG-M foi elaborado com as características típicas dos indicadores, a saber, a especificidade, a mensurabilidade, a acessibilidade, a oportunidade, a relevância e a extensibilidade para outros Tribunais de Contas. Ele possui cinco faixas de classificação, obtidas a partir de uma média aritmética dos pesos atribuídos a cada um dos quesitos que compõem cada uma de suas sete áreas de análise. Variam, portanto, de (A) altamente efetiva a (C) baixo nível de adequação. Possui sete subáreas, a saber: i-Educ (mede aspectos de educação pública); i-Saúde (avalia questões de saúde pública): i-Amb (abrange quesitos de proteção ambiental e políticas de saneamento); i-Gov/TI (envolvimento de tecnologia da informação e transparência no setor público); i-Fiscal (arrecadação, Lei de Responsabilidade Fiscal e orçamento) e i-Plan (planejamento e execução de metas e recursos empregues); e i-Cidades (ações relacionadas à segurança de munícipes em relação a desastres) (TRIBUNAL, 2022).

No que tange especificamente ao tema da gestão de riscos de desastres, a Figura 2 apresenta o resultado da última apuração do subindicador i-Cidades (para conhecer os quesitos que compõem o i-Cidades e a metodologia de cálculo, acesse aqui), com dados coletados em 2020 validados até outubro de 2021:

Mapa

Descrição gerada automaticamente

Figura 2: Notas dos municípios paulistas, com exceção da Capital (não jurisdicionada do TCE-SP) no âmbito do i-Cidades (www.iegm.tce.sp.gov.br)

Nota-se, a partir do gráfico da Figura 2, que a maior parte dos municípios paulistas obteve a classificação C, podendo-se inferir que não está preparada para a segurança que se espera nas cidades em caso de desastres, seja por falta de estrutura das respectivas unidades de Defesa Civil, seja por desigualdades na ocupação territorial, com políticas inadequadas de habitação e ocupação de áreas de risco ou, ainda com severos problemas de mobilidade urbana.

É certo, porém, que o i-Cidades não abrange todos os aspectos de prevenção e resposta a desastres e deverá paulatinamente ser ampliado e aprimorado, sem perder de vista os aspectos de confiabilidade e identificação de série histórica, adjacentes aos indicadores de modo geral. Mas para se obter uma visão mais holística e ampla da mitigação das vulnerabilidades e da construção de uma sustentabilidade sistêmica, é preciso que os gestores tenham atenção também para as outras subáreas do IEG-M, como o i-Educação, o i-Saúde, o i-Amb, o i-Gov/TI e mais especificamente sobre questões de planejamento orçamentário e gestão fiscal, o i-Planejamento e o i-Fiscal.

Há meios por onde o gestor público pode se socorrer, denotando que, além de recursos públicos, os dados podem servir de amparo para a vontade política que deseja combater os riscos e vulnerabilidades. Estabelecer objetivos e meta, além de monitorar as ações e programas rumo a essas metas, para aprimorá-las e torná-las mais efetivas: isso se faz por meio de ferramentas de avaliação, das quais os indicadores de sustentabilidade se mostram de extrema importância prática. São indispensáveis não só para a boa gestão, mas, quiçá, para o alcance de uma sustentabilidade sistêmica.


Referências:

BECK, Ulrich. La sociedade del riesgo global. Traducción de Jesus Albires Rey. Madrid: Siglo XXI de España Traductores, p. 113-121 e 137-141, 2002.

BOSSEL, Hartmut. Indicators for sustainable development: Theory, Method, Applications

A Report to the Balaton Group. IISD: Canada, 1999.

BRASIL. Decreto nº10.593, de 24 de dezembro de 2020. Dispõe sobre a organização e o funcionamento do Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil e do Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil e sobre o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil e o Sistema Nacional de Informações sobre Desastres. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Decreto/D10593.htm#art42>. Acesso em 09 mai. 2022.

CARVALHO, Délton Winter de; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Direito dos desastres. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2013.

CUTTER, Susan. Vulnerability to environmental hazards. In: CUTTER, Susan L. Hazards, vulnerability and environmental justice. London: Earthscan, 2006. Cap. 6, pp. 71-82.

FARBER, Daniel. Disaster law and emerging issues in Brazil. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD), São Leopoldo, RS, v.4, n.1, p. 2-15, jan-jun. 2012. Disponível em : < http://www.revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/rechtd.2012.41.01/932 >. Acesso em : 10 jun. 2022.

HELBING, D. Globally networked risks and how to respond. Nature n. 497, p. 51–59 (2013), disponível em: < https://www.nature.com/articles/nature12047 >. Acesso em 24 jun. 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Indicadores brasileiros para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: < https://odsbrasil.gov.br/relatorio/sintese >, acesso em: 11 jun. 2022.

LEITÃO, Manuela Prado. Desastres ambientais, resiliência e a responsabilidade civil. Rio de Janeiro, Lumen Juris: 2018.

MALHEIROS, Tadeu Fabrício; COUTINHO, Sonia Maria Viggiani; PHILIPPI JR, Arlindo. Desafio do uso de indicadores na avaliação da sustentabilidade. IN: PHILIPPI JR, Arlindo; MALHEIROS, Tadeu Fabrício (Ed.). Indicadores de Sustentabilidade e Gestão Ambiental. cap. 1, p. 1-29. Barueri: Manole, 2012.

________. Indicadores de sustentabilidade: uma abordagem conceitual. IN: PHILIPPI JR, Arlindo; MALHEIROS, Tadeu Fabrício (Ed.). Indicadores de Sustentabilidade e Gestão Ambiental. cap. 2, p. 31-76. Barueri: Manole, 2012.

PERNAMBUCO tem novos deslizamentos, e mortos pelas chuvas sobem para 129. Folha de S. Paulo. 07 junho 2022. Caderno Cotidiano. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/06/pernambuco-tem-novos-deslizamentos-e-mortos-pelas-chuvas-sobem-para-129.shtml >. Acesso em: 09 jun. 2022.

TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Índice de Efetividade da Gestão Municipal (IEG-M). Disponível em: < https://iegm.tce.sp.gov.br >. Diversos acessos.

UNDRR, 2022. Global assessment Report on Disaster Risk Reduction – Contributing Paper. GATZWEILER, Franz; LIU, Jieling ; HEGEDORN, Konrad ; RONG, Tan. Transitions towards systemic sustainability in the Anthropocene. United Nations Office for Disaster Risk Reduction (UNDRR). Disponível em <https://www.undrr.org/publication/transitions-towards-systemic-sustainability-anthropocene>, acesso em 10 jun. 2022.


  • OBJETIVOS DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL :


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