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Objetivos de Desenvolvimento Sustentável como instrumentos norteadores no enfrentamento da Covid-19 e o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico

por Letícia Martins Tanaka - publicado 12/03/2021 16:15 - última modificação 12/03/2021 17:08

por Thelmo de Carvalho Teixeira Branco Filho, Gérsica Nogueira da Silva, Alejandro Dorado, Victor Kinjo

por Thelmo de Carvalho Teixeira Branco Filho, Gérsica Nogueira da Silva, Alejandro Dorado, Victor Kinjo

Considerando a conjuntura estabelecida pela pandemia da Covid-19, o saneamento básico no Brasil foi rememorado como um problema latente no combate às desigualdades sociais. Apesar de contemplar quatro serviços elementares: i) abastecimento de água potável, ii) esgotamento sanitário, iii) manejo de resíduos sólidos e iv) drenagem e manejo das águas pluviais urbanas, o primeiro tem grande destaque dentre as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) para conter a disseminação da Covid-19. Entretanto, é sabido que uma parcela da população brasileira, cerca de 17% da população sem acesso à água tratada, segundo o SNIS (2018).  Quanto aos serviços de esgotamento sanitário esse déficit é maior, média nacional de 46,5% (ANA, 2019).

A intermitência e falta de água para distribuição à população é uma realidade de parte significativa dos municípios brasileiros, especialmente localizados na Região Nordeste, que há anos convivem com problemas relacionados à escassez hídrica. Nos últimos anos, no entanto, ficou evidenciado que a oferta de água também se revela crítica em outras regiões do país, especialmente nos maiores aglomerados populacionais das Regiões Sudeste e Centro-Oeste. Do universo de população com acesso à rede pública em 2017, somente 86,7% dos domicílios tinham água diariamente (ANA, 2019), o equivalente a mais de 18 milhões de pessoas.

O acesso universal e equitativo à água, trata de assegurar que esta seja fornecida para todos, independentemente de condição social, econômica ou cultural, gênero ou etnia. A equidade social tem como instrumento norteador a Agenda 2030, com 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos em 2015 pela Organização das Nações Unidas (ONU), definindo ações globais para atingir metas em diversas áreas, entre elas: o combate a fome, a proteção do planeta e da biodiversidade, garantia de paz e prosperidade, orientando políticas nacionais e atividades de cooperação internacional (PNUD, 2015).

No relatório “Responsabilidade compartilhada, solidariedade global: respondendo aos impactos socioeconômicos da Covid-19”, a ONU analisa prováveis impactos negativos da pandemia para a atender os ODS. O documento aponta para o risco de que interrupções no fornecimento e acesso inadequado à água limpa impeça o acesso para a higienização das mãos, uma das principais medidas de prevenção ao novo coronavírus e outras doenças, corroborando com metas essenciais do ODS-6 (ONU, 2020). O ODS-6 apresenta metas que visam alcançar, até 2030, o acesso universal e equitativo à água potável e segura para todos. Fortalecendo as interfaces entre saneamento universal, melhoria na qualidade da água, eficiência do uso dos recursos e implementação de gestão integrada dos recursos hídricos em todos os níveis.

O déficit de atendimento de água potável apresenta distribuição mais expressiva na população com faixa de renda até 1 salário mínimo, com média de 40% da população não atendida (ANA, 2019). Esta relação entre acesso aos serviços e condição socioeconômica, intensifica os desafios na oferta equitativa de infraestrutura adequada à população, demonstrando transversalidade de ações do ODS-6 com todos os demais objetivos (Figura 1). Como exemplo, o ODS-11, na garantia do acesso de todos a uma habitação segura, adequada e a preço acessível, mostra-se bastante desafiante, considerando o aumento do número de pessoas vivendo nos grandes centros urbanos, demandando uma prestação mais robusta e eficiente dos serviços básicos. Embora se observem investimentos e uma melhoria relativa nos indicadores que mensuram o acesso aos serviços de saneamento básico, o número de domicílios sem acesso ao abastecimento de água e ao esgotamento sanitário tem mantido relativa estabilidade, evidenciando que a política pública de saneamento não tem conseguido acompanhar o ritmo de crescimento demográfico, o processo de urbanização e a formação dos assentamentos precários no país (ANA, 2019).

Figura 1: Transversalidade do ODS-6 com os demais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Gráfico 3

Fonte: ANA, 2019

As populações que vivem em condições precárias enfrentam maior risco de exposição à Covid-19 devido à alta densidade populacional e condições precárias de saneamento e moradia (ONU, 2020), como se vê na fotografia 1.

Na perspectiva do desenvolvimento sustentável, a importância do esgotamento sanitário e abastecimento de água para a saúde pública, a qualidade de vida e o meio ambiente é amplamente reconhecida. Há décadas diversos estudos revelam a associação entre a ausência de saneamento básico, altos índices de internações hospitalares e elevadas taxas de mortalidade, especialmente a infantil (ANA, 2019). Conforme a OMS (2019), doenças de veiculação hídrica notadamente as diarreicas, representaram cerca de 900 mil mortes em 2016, no Brasil e respondem pela segunda principal causa de morte entre crianças com menos de 5 anos, mas paradoxalmente, em 90% dos casos, poderia ser facilmente prevenido ou tratado (CARVALHEIRO, 2018). Atuar sobre a mortalidade infantil também integra metas do ODS-3, que visa assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar, estabelecendo até 2030 metas para reduzir a taxa de mortalidade materna global, acabar com as mortes evitáveis de recém-nascidos e crianças menores de 5 anos.

Fotografia 1: Moradias irregulares (palafitas) no processo de urbanização no bairro do Pina, Região Metropolitana do Recife, Estado de Pernambuco

Foto

Fonte: https://www.instagram.com/livrotecabrincantedopina, 2020

Nesse contexto, foi aprovado o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4.162/2019) que resultou na Lei nº 14.026, promulgada no dia 15 de julho de 2020.  Vale dizer que esta lei não substitui a legislação vigente, a Lei 11.445 de 2007, mas sim acrescenta mudanças relevantes, inclusive em outros diplomas que regulam o setor. Dentre as inovações a lei prorroga o prazo para o fim dos lixões, facilita a privatização de estatais do setor e modifica o atual modelo contratual para empresas de água e esgoto que prestam serviços aos municípios, transformando essa relação contratual em concessões. O novo marco também obriga a abertura de licitações para a concorrência entre empresas públicas e privadas e pretende universalizar os serviços de água e esgoto até 2033 (99% de fornecimento de água potável e 90% para coleta e tratamento de esgoto).

Cabe agregar que, com a nova legislação, será extinto o atual sistema onde as empresas estaduais de água e esgoto assinam contratos com os municípios (valerão até março de 2022 e poderão ser prorrogados por 30 anos). Assim, os novos contratos, com regras de tarifação e prestação de serviços, serão por concessão com abertura de licitação envolvendo empresas públicas e privadas.

O modelo que será adotado no Brasil pode ter sido abandonado em outros países como Canadá, França e Argentina. Também existem dúvidas sobre o favorecimento à criação de monopólios ou oligopólios sobre o saneamento básico, assim como ao aumento de tarifas e o acesso das populações mais carentes.[1] Por outro lado, o modelo que tínhamos antes do novo marco também se mostrou insuficiente. Sobretudo, a questão entrou na pauta novamente e é permeada pelas incertezas.

Dentro desse panorama, a discussão do tema saneamento básico considerando a vulnerabilidade social e os impactos potencializados sob os aglomerados subnormais, implica em considerar novos paradigmas na teoria do planejamento urbano. A visão da gestão integrada de recursos hídricos também impõe a necessidade de desenvolver estruturas analíticas, ferramentas operacionais, e discussões conceituais inovadoras que proporcionem na esfera de formulação de políticas uma visão mais abrangente para enfrentar os desafios multidimensionais impostos pela gestão da água no contexto das mudanças globais (demográficas, climáticas, econômicas).

Assim, as perguntas que ficam são: como as metas dos ODS podem contribuir com a universalização de serviços básicos e garantir a equidade social? O que a transversalidade do tema representa?

Questões como estas deverão ser refletidas, com maior responsividade, pelos pesquisadores da área, o que o Instituto de Estudos Avançados da USP, como Centro de Síntese por meio do Programa USP Cidades Globais vem fazendo com seriedade e perspicácia.

Obviamente a discussão planejamento e gestão do Saneamento Básico não resolverá os problemas endêmicos brasileiros, nem a relação entre humano [2] e a natureza, mas sim uma nova etapa das relações entre os homens através da natureza, o que certamente, deve introduzir uma nova fase no marco socioambiental nacional.

Diante do infográfico acima (Figura 1) pode-se ao menos em tese afirmar a ideia de que haja vista as incertezas geradas pela crise, os ODS poderiam ser bons guias para orientar as políticas e ações no pós-Covid. É fato que, desde sua aparição no cenário brasileiro[3] provocou vultosas alterações. Salta aos olhos que, o nó górdio está em relação com os menos favorecidos, isto é, a desigualdade desenfreada presente na sociedade. Logo, a política da universalização, com a aprovação do Marco Regulatório do Saneamento Básico terá como mote a cura desta chaga? Outrossim, precisou a Covid-19 surgir para refletir o quanto o saneamento básico é primordial?

A implementação do novo marco regulatório significa complexos desafios de pesquisa e governança. A partir da perspectiva multidimensional dos ODS, podemos avaliar o impacto da legislação nas políticas, práticas, indicadores e realidades da água em nível estadual, regional, municipal e local. Desse modo, pode-se, quem sabe, contribuir para uma visão da sustentabilidade sobre as relações entre o Estados, os atores privados (incluindo empresas e movimentos da sociedade civil) e o conhecimento ativo e interdisciplinar na construção de sociedades mais sustentáveis.

 

REFERÊNCIAS

ANA – Agência Nacional de Águas. 2019. ODS 6 no Brasil: Visão da Ana sobre os indicadores. Brasília-DF: ANA. Disponível em: https://www.ana.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/publicacoes/ods6/ods6.pdf.

BRASIL. Senado Federal. 2020. Projeto de Lei 3261/19. Atualiza o marco legal do saneamento básico e altera a Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/137118.

CARVALHEIRO, J.R. 2018. Água, saúde e desenvolvimento sustentável. In: Buckeridge, M.; Ribeiro, W.C. (Eds.). Livro branco da água. A crise hídrica na Região Metropolitana de São Paulo em 2013-2015: origens, impactos e soluções. 1a ed. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados, v. 1, p. 14-21. Disponível em: http://www.iea.usp.br/publicacoes/ebooks/livro-branco-da-agua.

NETO, S.S. 2016. Water governance in an urban age. Util. Policy 2016. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jup.2016.05.004.

OMS - Organização Mundial da Saúde. 2019. Sanitation. Disponível em: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/sanitation.

ONU - Organização das Nações Unidas. 2020. Shared responsibility, Global solidarity: Responding to the socio-economic impacts of COVID-19. Disponível em: https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/sg_report_socio-economic_impact_of_covid19.pdf.

PNUD - Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 2015. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: http://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/sustainable-development-goals.html.

SNIS – Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento 2018. Disponível em http://www.snis.gov.br/. Acesso em 29/04/2020.