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Reindustrialização verde na Europa: políticas, obstáculos e a complexidade das cadeias de suprimentos globais

por admin - publicado 06/05/2024 09:15 - última modificação 15/05/2024 12:59

Autoras: Elaine Santos, Juliana Rulli e Maria da Penha Vasconcellos

Elaine Santos[I], Juliana Rulli[II] e Maria da Penha Vasconcellos[III]

Nas últimas décadas, questões como mudanças climáticas, transição energética e a autossuficiência em áreas estratégicas têm ocupado os holofotes na Europa. Até consolidar um plano de políticas e estratégias, a Comissão Europeia, desde 2007, vinha implementando o Plano Estratégico SET PLAN[1], considerado o alicerce tecnológico para as políticas de energia e clima da União Europeia (UE).

Em 2016, surgiram 12 iniciativas abrangentes focadas em eficiência energética, fontes renováveis, mercado elétrico e governança, visando impulsionar investimentos público e privado para fortalecer a competitividade industrial europeia, com previsão de entrar em vigor em 2021 (Gil, 2021). Em 2019, em um contexto pré pandêmico, o Conselho Europeu estabeleceu o European Green Deal (Acordo Verde Europeu – EGD, sigla em inglês) como a principal estratégia para combater as alterações climáticas e atingir a neutralidade carbônica, posicionando a Europa como o primeiro continente com impacto neutro no clima até 2050. Inspirado no New Deal de Roosevelt, o EGD surge como resposta à crise climática e como uma bússola para a recuperação econômica pós-crise financeira de 2008.  Assim, investir em novos mecanismos de controle, intervindo e estimulando a economia, posicionou o mundo das energias renováveis como a garantia de recuperação econômica para esta crise sistêmica. Este contexto ganha ainda mais relevância diante dos relatórios enfáticos do IPCC sobre o aquecimento global, projetando um "futuro ausente".

Assim sendo, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, as ações políticas para impulsionar a economia verde visam à recuperação econômica a curto prazo por meio de investimentos nessa área. No entanto, os resultados podem não atender completamente às expectativas, especialmente em meio a uma recessão evidente (Mathias et al., 2021). Embora o Green New Deal, apresentado pelos Estados Unidos em 2019, e o European Green Deal compartilhem uma base política e econômica na perspectiva de mitigar a crise, suas execuções diferem. As políticas nos Estados Unidos são mais expansivas e baseadas em apoios diretos. Na Europa há uma tendência a certo paternalismo na concessão de apoios aos Estados-membros, o que cria barreiras e burocratiza a aprovação desses apoios. Essas diferenças refletem a estrutura organizacional dos entes políticos em suas organizações de governança.

No âmbito europeu, o EGD passou a ser visto como uma boia de salvação no contexto econômico pós-pandemia de COVID-19, com a destinação de 1,8 trilhão de euros de investimentos a partir do plano de recuperação NextGenerationEU. Desse total, 1,074 bilhão faz parte do orçamento multianual para o período de 2021-2027, oriundo de um orçamento já existente, independentemente da crise causada pela pandemia da Covid-19. Já o orçamento adicional, levantado para o fim específico de estímulo frente à pandemia, consiste em 750 bilhões de euros, a serem obtidos por meio de endividamento público do bloco (Mathias et al., 2021:156).

Além da centralidade econômica, esse pacote assume também um significado multilateral e de integração regional. Tais aspectos têm sido objeto de controvérsias no contexto europeu, alimentando o crescimento de um nacionalismo extremo e conservador, principalmente considerando as desigualdades existentes entre os países do bloco, conforme destacado por Perales (2022).

Contudo, as dinâmicas globais não se limitam apenas a investimentos e políticas verdes. A ocorrência de eventos geopolíticos significativos, como a pandemia de COVID-19 e as guerras em curso tem provocado mudanças no cenário energético, destacando a necessidade de reduzir a dependência de energia e das matérias-primas críticas, impulsionando a reorganização das cadeias produtivas globais.

No caso europeu, essa conjuntura induziu uma convergência entre as metas do EGD com os imperativos de sua reindustrialização. Dessa forma, a Europa decidiu adotar medidas decisivas para reconstruir sua soberania e reduzir as dependências do exterior, especialmente no caso do gás, petróleo e carvão russo, bem como à indústria tecnológica chinesa (Perales, 2022).

Para alcançar a autonomia energética e fortalecer a reindustrialização, a Europa enfrenta alguns desafios. Um dos principais é a dependência europeia em relação às importações de energia. Em 2020[2], a Europa importou 58% de sua energia, principalmente de gás natural, petróleo e carvão. O que os torna vulneráveis aos choques no mercado global de energia, como a crise de gás natural de 2021. Em resposta a essa realidade, foi lançado o plano Fit for 55[3] em 2021, um conjunto de propostas destinadas a rever e atualizar a legislação da UE e a criar novas iniciativas com o objetivo de assegurar que as políticas da UE estejam em consonância com os objetivos climáticos. A guerra na Ucrânia e a necessidade de reduzir a dependência da UE em relação às importações de combustíveis fósseis da Rússia impulsionaram a implementação do plano REPowerEU[4] em 2022, buscando poupar e produzir energia limpa, bem como diversificar o fornecimento energético.

De modo geral, essas políticas preconizam a adoção de fontes renováveis em todos os setores, abrangendo construção, indústria, transporte e agricultura. Mathiesen et al. (2022) abordam a eficiência energética, analisando os documentos políticos "REPowerEU" e "Fit for 55". Os autores expressam uma visão positiva em relação a essas propostas, considerando-as cruciais para atingir a eficiência e independência energética na União Europeia. Além disso, enfatizam a importância de investimentos substanciais em pesquisa e desenvolvimento para fomentar a inovação e aprimorar a eficiência energética.

Outro desafio que a UE precisará enfrentar no seu projeto de reindustrialização verde é a escassez de matérias-primas críticas. Desde 2011, a UE elabora uma lista de matérias-primas fundamentais para a produção de energia renovável e tecnologias de baixo carbono, como baterias, células a combustível e painéis solares. Contudo, sua presença no mercado global de matérias-primas críticas é limitada, representando apenas 3% do consumo total da UE (Silva, 2023). Isso pode impactar negativamente a produção e a implementação eficaz das tecnologias relacionadas à energia renovável. Esta situação obrigou a revisão do Regulamento Europeu de Matérias Primas Críticas, objetivando aumentar e diversificar o aprovisionamento da União Europeia em matérias-primas, reforçando a circularidade e apoiando a investigação na área (Comunicado de Imprensa do Parlamento Europeu, 2023).

Nesse contexto, a Comissão Europeia apresentou em 2020[5] um plano de ação para as matérias-primas críticas, essenciais para as chamadas "tecnologias do futuro". Um dos objetivos desse plano, agora regulado pela lei de matérias-primas[6], é fortalecer a aquisição de matérias-primas dentro da Europa, estabelecendo um ideal de dependência em que 10% das necessidades anuais da UE sejam provenientes de extração interna, 40% do consumo anual deverá provir de transformação realizada na UE, e pelo menos 25% do consumo anual deve provir da reciclagem interno. Além disso, o plano propõe que não mais de 65% das necessidades anuais da EU, de cada matéria-prima estratégica e em qualquer fase relevante do tratamento, tenham origem em um único país terceiro.

Quanto à mineração em território europeu, a Europa tem buscado aumentar essa atividade para garantir o suprimento interno. Segundo o estudo da Eurometaux (2022), a transição energética da Europa enfrenta vulnerabilidades de abastecimento e déficit de suficiência nos próximos 15 anos sem insumos seguros. O estudo indica que, a realização de projetos nacionais de mineração e refinação atenuaria o risco de abastecimento da Europa a médio prazo. Isso também terá de ser combinado com escolhas ativas de importação junto a parceiros ambientalmente responsáveis, sob condições de comércio justas (Eurometaux, 2022).

Porém, esse aumento da mineração em território europeu também tem seus limites, tanto em termos de contestações por parte das populações locais que não querem conviver com projetos de mineração em seus territórios, quanto em relação às dificuldades na obtenção de licenciamentos, o que pode desmotivar os investimentos em solo europeu, empurrando a extração para os países periféricos, que já apresentam pressão e impactos relacionados a estes novos patamares de extração de minerais relacionados à transição energética. Desta forma, as políticas dos países centrais podem situar países e regiões como exportadores de matérias-primas e energia para que os países centrais recuperem suas economias e usufruam das novas tecnologias decorrentes dessa transição.

E se, por um lado, cadeias de suprimentos intensivas, como as relacionadas às novas tecnologias, são difíceis de serem realocadas a curto prazo devido a sua concentração em alguns países como a China, por outro, as disparidades entre países em âmbito europeu não parecem consideradas, indicando a manutenção da hierarquia produtiva. Esta dinâmica se manifesta na extração de matérias-primas estratégicas entre os Estados-membros, como Portugal e Espanha, enquanto a etapa subsequente de transformação desses recursos em baterias parece destinada a ocorrer em outros países, como Alemanha e França.

Nesse contexto, o caminho de uma reindustrialização na Europa em meio à recessão exigirá estratégias mais bem elaboradas, levando em consideração não apenas a complexidade das cadeias de suprimentos, mas também as nuances existentes entre os diversos países do continente e a necessidade de sair da crise por meio deste programa. Além dos conflitos socioambientais que poderão ocorrer com a velocidade do aumento dos patamares de extração, principalmente em locais que não convivem com a mineração há décadas e cuja centralidade produtiva local está na produção agrícola.

Referências

Comunicado de Imprensa, Parlamento Europeu (2023) Critical raw materials: MEPs adopt plans to secure the EU's supply and sovereignty. Disponível:https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20231208IPR15763/critical-raw-materials-plans-to-secure-the-eu-s-supply.

Eurometaux (2022) Metals for Clean Energy: Pathways to solving Europe’s raw materials challenge. Policymaker Summary. Disponível em https://eurometaux.eu/media/hr2ftbp3/2022-policymaker-summary-report-final-13-5-22.pdf.

Gil, L. (2021). Política energética no contexto da União Europeia. Disponível em:https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/38046/1/Politica%20energ%C3%A9tica%20no%20contexto%20da%20Uni%C3%A3o%20Europeia.pdf. Acesso em 11/12/2023.

Mathias, João Felippe Cury Marinho, et al. "Green New Deal como estratégia de desenvolvimento pós-pandemia: lições da experiência internacional." Revista Tempo do Mundo 26 (2021): 145-174.

Mathiesen, B. V., Ilieva, L. S., Skov, I. R., Maya-Drysdale, D. W., & Korberg, A. D. (2022). REPowerEU and Fitfor55 science-based policy recommendations for achieving the Energy Efficiency First Principle. Disponível em: https://repositorio.comillas.edu/xmlui/handle/11531/47361.

Perales, J. A. S. (2022). El Pacto Verde, NextGenerationEU y la nueva Europa geopolítica. Documentos de trabajo (Fundación Carolina): Segunda época, (63), 1.

Silva, M. Isabel (2023) Lei das Matérias-Primas Críticas com metas para soberania industrial da UE. Disponível em https://pt.euronews.com/my-europe/2023/03/16/lei-das-materias-primas-criticas-com-metas-para-soberania-industrial-da-ue#:~:text=Atualmente%2C%20apenas%203%25%20dos%20materiais,Europa%2C%20incluindo%20as%20terras%20raras.

ODS relacionados

7 – Energias renováveis e acessíveis
9 – Indústria, inovação e infraestruturas
11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis


[I] - Pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP.
[II] - Pós-doutoranda do Centro de Síntese USP Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados da USP; Fiocruz.
[III] - Docente da Faculdade de Saúde Pública da USP; pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP.
1 - Disponível em https://energy.ec.europa.eu/topics/research-and-technology/strategic-energy-technology-plan_en. Acesso em 16/1/2024.
2- Disponível em https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/how-dependent-are-eu-member-states-on-energy-imports. Acesso em 11/10/2023.
3 - Disponível em https://www.consilium.europa.eu/pt/policies/green-deal/fit-for-55-the-eu-plan-for-a-green-transition. Acesso em 07/1/2024.
4 - Disponível em https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal/repowereu-affordable-secure-and-sustainable-energy-europe_pt. Acesso em 07/1/2024.
5 - Disponível em https://cor.europa.eu/pt/news/Pages/critical-raw-materials-role-future-of-europe.aspx. Acesso em 10/12/2023.
6 - Disponível em https://www.consilium.europa.eu/pt/infographics/critical-raw-materials. Acesso em 11/1/2024.