Discurso midiático revelou as vozes dominantes durante crise da água
De cada dez reportagens publicadas na grande imprensa nos últimos 15 meses referentes à crise hídrica na Grande São Paulo, sete delas trataram de alguma possível solução para a crise. Até o início de 2015, a integração dos sistemas de abastecimento de água foi a principal solução apontada nas reportagens. A prática do reuso e o incentivo à redução do consumo apenas ganharam mais atenção num período subsequente, após os primeiros meses de 2015.
Da esq. para direita: Kiss,Checco, Jacobi e Cibim: desafios à transparência das informações |
Essas constatações são da pesquisa “Crise Hídrica e a Mídia”, apresentada no dia 15 de setembro no IEA. O levantamento foi empreendido pelo Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e pelo Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP.
Entre os profissionais convidados para debater os resultados, o professor José Carlos Mierzwa, do Departamento de Engenharia Hidráulica da Escola Politécnica (Poli) da USP, ponderou que a pesquisa refletiu o que acontece nas políticas publicas da área.
“Constatamos problemas na racionalização do uso, com a falta de políticas de gestão da oferta e da demanda. Durante um período, as citações sobre reuso aumentaram, mas depois dispersaram e esmoreceram. Por outro lado, há muito desperdício na rede e consumo excessivo”, disse Mierzwa.
Para o especialista, o resultado aponta um problema antigo que se agravou com o adensamento populacional e o uso do solo.
Mierzwa: "Citações sobre reuso aumentaram, mas depois esmoreceram". |
“Os recursos são escassos e sempre acabamos trazendo água de mais longe, o que leva a mais escassez, pois um maior volume de água significa mais necessidade de saneamento. Com isto, esgotamos nossos rios e trazemos mais contaminação. A solução é tratar o que está aqui”, afirma.
Segundo o professor, a Poli está realizando estudos de viabilidade técnica para reuso potável direto, pois já existem tecnologias que permitem extrair desse processo uma água com níveis de potabilidade aceitos internacionalmente.
Resultados
As principais conclusões do estudo foram apresentadas em um infográfico informativo. A organização do debate contou com o apoio do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade, do Grupo de Pesquisa em Política Públicas, Territorialidade e Sociedade e do Instituto de Democracia e Sustentabilidade
De janeiro de 2014 a abril de 2015, a pesquisa analisou 503 notícias publicadas em três dos principais jornais brasileiros – Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo –, relacionadas à crise de água na Grande São Paulo.
A análise do material foi dividida em três fases. A primeira, de janeiro a outubro de 2014, corresponde ao período anterior à aceitação da crise; a segunda, até fevereiro de 2015, foi quando a sociedade e as autoridades reconheceram a situação de crise, no pós-eleições; e a terceira, entre março e abril de 2015, quando houve o reconhecimento da crise e começaram as tomadas de decisões para sanar o grave estresse hídrico.
Na fase 3, o estudo mostra que oito de cada dez notícias tratavam de soluções emergenciais, sendo que as dez soluções mais apontadas foram a diminuição da pressão (18%), seguida por integração dos sistemas (14%); incentivo à redução do consumo (10%); sobretaxa e multas por consumo excessivo (10%); reajuste da vazão outorgada (8%); aumento da produção/vazão (7%); uso do volume morto (5%); redução de perdas na distribuição (5%); aumento do número de reservatórios (5%) e racionamento (4%).
A pesquisa também mapeou os principais atores sociais mencionados ou consultados a respeito do tema. Na fase 1, as “vozes” que mais tinham presença na mídia eram do setor público (estaduais e federais), seguidas por representantes de universidades; setor privado; ONGs e movimentos sociais; comitês de bacia; e outros.
Na fase 2, aumentou a citação dos setores privados, das ONGs e movimentos sociais. A grande diferença ocorreu na fase 3, quando diminuiu a presença tanto de setores públicos quanto de comitês de bacia, em detrimento do aumento da participação de partidos políticos e do setor privado.
Mancini, uma das coordenadoras do estudo, e Barrêto, da TNC |
“Um dado importante no desenrolar dos fatos foi a criação da Aliança pela Água, uma coalizão que conta com a participação de mais de 50 organizações da sociedade civil. Com isto, a sociedade civil passou a ser mais representada nas notícias sobre o tema”, disse Rosa Maria Mancini, uma das coordenadoras do estudo.
Para a urbanista Marussia Whately, do Instituto Socioambiental, “o levantamento mostra que o discurso da mídia refletiu as narrativas predominantes de cada período”. Whately lembrou que na primeira fase houve prevalência da falta de chuva apontada como causa da crise. Em seguida, a má gestão ganhou destaque nas notícias avaliadas.
“A evolução da narrativa fica evidente na terceira fase”, disse Whately. Nesse período, há um aumento do discurso sobre desperdício e perdas, além de mais espaço para partidos políticos, setor privado e sociedade civil organizada.
“De fato, a narrativa começa de maneira pontual e evolui conforme aparecem novos dados e novas fontes são consultadas. Acredito que problemas ambientais ou temas mais específicos foram muito bem colocados em veículos especializados. Mas isso geralmente não é feito na mídia diária, que repercute o factual, o dia-a-dia”, avalia a jornalista Janice Kiss.
Whately e Fracalanza: discurso da mídia refletiu as narrativas predominantes |
Para Kiss, o tema perdeu destaque porque “ infelizmente, há outros mais urgentes na agenda política e econômica do momento e não há equipes nem espaço que deem conta de cobrir tudo”, afirma.
“Percebo que os jornalistas não ficaram só com o discurso oficial, não ficaram simplesmente repetindo que a falta de chuva foi a causa da crise. Buscaram novos dados e mostraram outros aspectos”, disse o jornalista Rubens Filho, do Instituto Trata Brasil.
Transparência
A professora Ana Paula Fracalanza, (EACH-IEE-IEA) apontou que apesar do esforço midiático na cobertura da crise hídrica, as informações não chegaram ao grande público de forma muito clara, de maneira que todos pudessem compreender a situação.
Para o professor Pedro Jacobi, (IEA-IEE), que também coordenou o estudo, é importante atentar para a forma como a imprensa olha e aborda determinadas questões, pois a omissão de dados também é desinformação.
Samuel Roiphe Barrêto, da ONG The Nature Conservancy (TNC), aponta a dificuldade da mídia em contrapor dados oficiais. “Eu que sou especialista no assunto tive dificuldades para encontrar e entender informações de sites como o da Sabesp”, exemplificou.
Coordenador do Movimento Água para São Paulo e do Programa de Conservação da Floresta Atlântica e Savanas Centrais da TNC, Barrêto lembrou que a mídia precisa melhorar a cobertura sobre questões ambientais que impactam no estresse hídrico.
“As pessoas ainda têm muita dificuldade de entender a relação da cobertura vegetal e da ocupação do solo com a disponibilidade hídrica. Isso deveria ser mais explorado”, disse Barrêto.
Painel também teve a presença da especialista em sustentabilidade Maria Augusta Pinto, do Instituto Jatobás, além da moderadora do debate, Juliana Cassano Cibim, que também coordenou a pesquisa. Coordenadora de conteúdo do IDS, advogada e consultora ambiental e professora da USP, FAAP e FGV, Cibim coordenou a plateia em torno de questões sobre transparência, metodologia do estudo e o papel dos comunicadores diante dos problemas enfrentados sobre a água.
A equipe executiva do trabalho foi composta por Renata Souza Leão (Procam/IEE/USP) e Guilherme Checco (IDS).
A pesquisa “Crise Hídrica e a Mídia” integra o Projeto sobre Recursos Hídricos realizado com o IEE/USP, no âmbito do acordo de cooperação técnico-científico firmado pelas instituições em novembro de 2014.