Entre a criança e a política pública

por Nelson Niero Neto - publicado 01/08/2019 18:05 - última modificação 20/08/2019 14:58

Avaliar é um dos meios de se observar o desenvolvimento, seja das crianças em um berçário ou de um sistema de ensino. Mais para que isso aconteça, a avaliação deve ser mais do que um produto
Pontos-chave
  1. Na perspectiva das crianças, planejar possui dois sentidos, ambos relacionados ao presente. O primeiro é sobre o que os adultos fazem para cuidar dela. O segundo está ligado ao brincar e ao imaginar: planejar-se sadia quando está doente, planejar a presença dos pais quando eles estão longe, e assim por diante.
  2. A avaliação para as crianças tem relação com o gosto, com aquilo que lhes traz prazer.
  3. O aspecto diacrônico da avaliação diz respeito ao avaliar considerando todo o processo de aprendizagem e não apenas um único momento.
  4. O aspecto sincrônico da avaliação trata de avaliar os estudantes em seu desenvolvimento integral, considerando as diversas dimensões da sua formação.
  5. Pensando no quaterno ensinar-aprender, avaliar-desenvolver-se, é necessário conceber avaliações que ajudem na promoção do desenvolvimento dos estudantes.

Por Rodrigo Ratier e equipe

Com frequência as avaliações são propostas considerando apenas o ponto de vista daquele que a está aplicando. Durante sua palestra “Avaliação: As ideias de medida e valor e o significado dos indicadores” no segundo encontro do Ciclo Ação e Formação do Professor, Lino de Macedo apresentou provocações para inverter essa lógica e possibilitar que educadores considerem a perspectiva dos estudantes e os sistemas de ensino observem os contextos das escolas ao elaborar propostas para observar desempenho de pessoas, instituições e redes.

Macedo reforçou a ideia de que é preciso avaliar os estudantes de maneira integral e que os resultados sejam utilizados não apenas como uma fotografia de um momento específico, mas como maneira de promover o desenvolvimento dos estudantes, considerando os diferentes ritmos e percursos que podem ser percorridos. "É como subir montanhas: não dá para querer que todos subam até o mesmo ponto e pelo mesmo caminho", ressalta o palestrante.

A perspectiva das crianças

Até por volta dos seis anos de idade, as crianças vivem o presente, sem muita preocupação a respeito do passado ou do que virá. O dia é pautado pela sua rotina, pelo que os adultos que a cercam fazem para garantir a sua sobrevivência. Com o tempo, elas passam a notar a regularidade de algumas ações como o comer, o dormir e passam a reconhecer os espaços e objetos onde podem brincar, assim como passam a ter sonhos sobre o futuro.

Nesse contexto, o planejar está intimamente ligado ao imaginar. As brincadeiras simbólicas que manifestam essa imaginação são um indicativo desse planejamento. "As crianças imaginam o pai e a mãe presentes quando eles estão longe, se imaginam saudáveis quando estão doentes, se imaginam adultas quando ainda são pequenas, e assim por adiante", explica Lino de Macedo.

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A avaliação, também de acordo com o que vivemos na infância, está ligada às sensações provocadas pelos sentidos, aos gostos. "Quando ela prova algo, isso desperta prazer nela ou não, geralmente relacionando o que ela sente ao sabor do leite materno, que é doce", diz o palestrante. Em outros momentos, a avaliação está relacionada ao que sentem no toque se o adulto a carrega ou a ajuda na higiene de maneira carinhosa ou mais ríspida, por exemplo , no cheiro, se gostam do que veem.

Essas ideias, por mais que pareçam ser substituídas, seguem conosco para o resto da vida. "Está aí a origem da nossa ideia de avaliar", afirma Macedo. Na ação docente, o planejar está relacionado aos sonhos, aos projetos que os docentes têm para os estudantes com quem trabalha. Na política pública, avaliação e planejamento precisam integrados ao projeto de Educação pública que o país pretende colocar em prática.

O valor e o tempo

"Avaliar é dar valor", define o professor. A ideia de valor, na origem da palavra, está ligada ao significado de riqueza e também à palavra latina valere, que significa ter um corpo forte ou ser valente. A avaliação está, portanto, ligada a um aspecto afetivo, de buscar o que há de rico e valoroso nas ações que são observadas. "Avaliar não é controlar", destaca Macedo. O palestrante ressalta que há hoje uma presença de avaliações como produtos: provas e testes são utilizados de maneira desarticulada a projetos e ao desenvolvimento das pessoas e das instituições. "A prova é um momento muito fugaz, muito passageiro", diz.

Pergunta da plateia

Ao avaliar, como alinhar o que é com o que deveria ser, sem recorrer a um padrão?

É necessário analisar como os objetivos comuns e as expectativas se adequam a cada aluno. Lino de Macedo propõe imaginar uma cadeia montanhosa: há diversas montanhas, cada uma com uma geografia e uma altura própria. No caso do aprendizado da leitura e da escrita, por exemplo, o objetivo comum seria permitir que os estudantes tenham acesso ao mundo letrado, ou seja, chegar ao topo da montanha. Entretanto, como esse trajeto será percorrido, qual a altura da montanha, e outros itens é algo que é definido durante a própria caminhada. "Uma coisa é dar a todos e a cada um o direito de chegar até o topo. Outra coisa é padronizar, dizendo que só pode essa montanha e por essa trilha", explica o professor. Definir padrões muito restritos sobre o que será aprendido e como terá que ser aprendido é apostar em algo impossível e, novamente, gerar desigualdades.

Um dos grandes desafios é enquadrar a ação docente no tempo, na relação entre presente, passado e futuro. Macedo explica que o planejamento é uma ação do presente, que diz respeito a algo que vai acontecer no futuro e que deveria usar o passado como referência. Já a avaliação é uma ação do presente que se desdobra sobre o passado e deveria dar indicações sobre o futuro. Essa noção, que considera a evolução temporal dos processos é chamada de diacrônica. "Às vezes, avaliar não é ver o que o sujeito fez naquele instante, mas ver o quanto ele progrediu", exemplifica Luís Carlos de Menezes, também membro da Cátedra de Educação Básica.

Uma segunda noção de ação docente é aquela que considera diferentes aspectos em um mesmo momento, chamada por Macedo de sincrônica. Partindo da ideia de que os estudantes devem se desenvolver de maneira integral na escola, o planejamento e a avaliação deveriam também considerar diversos aspectos, e não apenas os conteúdos. " Como planejar numa perspectiva que vê o projeto político pedagógico da escola, que vê o instante que vivemos em termos de país, que vê a criança no seu presente, no seu futuro, no contexto da sua família, da sua cidade, do lugar onde ela mora?", provoca.

Mesmo as avaliações externas -- importantes para os gestores públicos e para a concepção de novas políticas -- também possuem limitações relacionadas a esses fatores. Uma nota do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) não traduz os processos e o contexto em que uma escola faz seu trabalho. Se duas escolas tiraram notas 7 e 6, respectivamente, é evidente que uma teve um desempenho melhor do que a outra. Agora, se analisarmos a evolução das escolas e vemos que uma passou de 6 para 7, enquanto a outra avançou de 4 para 6, é possível ver como a escola com nota menor ainda tem desenvolvido um trabalho interessante.

Avaliação e desenvolvimento como pares

Ensinar, aprender, avaliar e desenvolver: Macedo usa esses quatro verbos como referências do que se desenrola na relação entre aluno e professor. "Se eu ensino, o aluno aprende. Se eu avalio, o estudante se desenvolve", diz. Nesse modelo, avaliação e desenvolvimento são processos conectados entre si.

Quem é Lino de Macedo

Mestre, doutor e livre docente em psicologia. É membro da Academia Paulista de Psicologia e Professor Emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É também assessor do Instituto Pensi, Fundação José Luiz Egydio Setubal e integra a Cátedra de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados, USP. Especializou-se no construtivismo de Jean Piaget (1896-1980) e na psicologia aplicada à educação e à saúde infantil, recorrendo aos jogos e brincadeiras para observar e promover processos de aprendizagem e desenvolvimento.

O desenvolvimento é encarado como transformação e a avaliação é o que possibilita observar esse processo e planejar para que ele continue acontecendo. Competências como as propostas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) precisam ser desenvolvidas. "Não ensinamos competências, mas ensinamos habilidades que possibilitam a mobilização de competências", afirma o palestrante.

A avaliação de itens como autonomia, autogestão e empatia não é simples.  "Avaliar significa atribuir valor àquilo que pôde se desenvolver graças ao nosso trabalho em sala de aula", explica Macedo. Por isso, é importante que ela se dê de maneira sincrônica e diacrônica.

No fim das contas, o trabalho do professor ao avaliar se assemelha ao de um juiz. Não como aquele que impõe uma medida, mas como alguém sereno, calmo, que avalia as circunstâncias e faz um julgamento justo do que ele pôde observar. "De forma humilde, generosa, responsável, tolerante, autônoma, o professor pode se colocar sem medo, sem arrogância, como juiz porque, na sala de aula, ele é a referência dos alunos", conclui Macedo.