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Antropoceno, hiperobjetos e um mundo-sem-nós

por Fernanda Rezende - publicado 18/02/2022 16:51 - última modificação 18/02/2022 16:51

por Clayton Policarpo, pesquisador no programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD), da PUC-SP. É professor na graduação em Artes Visuais e no curso de especialização em Cultura Material e Consumo (ECA-USP). Arquiteto e artista multimídia, diretor de arte e designer de peças gráficas e sistemas hipermidiaticos.

por Clayton Policarpo, pesquisador no programa de Tecnologias da Inteligência e Design Digital (TIDD), da PUC-SP. É professor na graduação em Artes Visuais e no curso de especialização em Cultura Material e Consumo (ECA-USP). Arquiteto e artista multimídia, diretor de arte e designer de peças gráficas e sistemas hipermidiaticos.

30 de dezembro de 2021

Ao mesmo tempo que reergue controvérsias acerca das fronteiras do humano diante do atual colapso planetário-civilizacional, o Antropoceno incita debates que desafiam a nossa compreensão. Essa nova época geológica “nos abrange, nos extrapola – já que atinge todo o planeta, de forma ampla – e acabou por assumir uma dimensão impensada por nossa espécie” (MESSIAS, 2019, p. 80-81). Dada a sua incomensurabilidade, o Antropoceno pode ser lido como um “hiperobjeto”, um fenômeno e/ou entidade que, segundo Morton (2013), é tão grandioso em sua escala e temporalidade que excede a capacidade de percepção do humano. A crise climática, a pandemia de Covid-19 são hiperobjetos, assim como os materiais radioativos, a internet, o fim do mundo, também o são.

Em uma decorrência extrema de um novo intervalo de tempo geológico, frente aos fracassos em conter a derrocada da civilização, emerge uma outra ameaça limite: o fim do mundo. Eugene Thacker (2011) dispõe que confrontar uma perspectiva de fim do mundo é confrontar a nossa capacidade de entende-lo. “O mundo é cada vez mais impensável – um mundo de desastres planetários, pandemias emergentes, mudanças tectônicas, clima singular, paisagens marítimas encharcadas de petróleo e a ameaça furtiva e sempre crescente de extinção.” (THACKER, 2011, p. 1).

Dos mitos ancestrais às distopias ficcionais da cultura de massa, as narrativas que entreviam uma extinção do nosso mundo têm adquirido novos contornos desde o final do século passado. Os precedentes de um esforço em pensar o cataclismo global já figuravam as cosmologias de diversas culturas humanas: a realidade sob o controle dos deuses na mitologia grega, que evoca um cenário ao mesmo tempo familiar e obscuro; o cristianismo medieval, que tende a circunscrever o não humano em uma estrutura moral de salvação; a consolidação do sujeito na modernidade à luz da ciência, da alta tecnologia, do capitalismo industrial e pós-industrial. Essas lentes interpretativas, como coloca Thacker, tendem a trazer o pressuposto de um mundo centrado no homem, que se vê inserido em culturas humanas e governado por valores humanos, de forma que “quando o não humano se manifesta para nós de modo ambivalente, nossa resposta mais frequente é recuperar esse mundo não humano em uma visão de mundo dominante e centrada no homem” (ibid.). O exercício paradoxal de se pensar o fim em narrativas da ficção é aqui apresentado em breves descrições de algumas produções do cinema, selecionadas a partir dos diálogos que estabelecem com duas principais perspectivas: um nós-sem-mundo e um mundo-sem-nós.

O nós-sem-mundo, a humanidade que lhe tem subtraída as condições fundamentais de existência, pode ser exemplificado pela franquia Mad Max, iniciada no final da década de 1970, que conta com direção de George Miller. Nos filmes, o cenário desértico e pós-apocalíptico emoldura lutas travadas em prol de subsistência. Nos três primeiros filmes, de 1979, 1981 e 1985, o pano de fundo das narrativas é o conflito pela escassez de petróleo; já no quarto episódio da série, de 2015, a falta de água é o agravante das disputas e guerras.

Da mesma forma, um “fim do mundo”, com um processo de “desvitalização ontológica do ambiente (devastação ou artificialização integrais do planeta), com efeitos ‘desumanizadores’ sobre os sobreviventes” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 61) é expresso no filme A Estrada (The Road), de 2009, com direção de John Hillcoat, baseado no romance homônimo de Cormac McCarthy. A película de Hillcoat discorre sobre o percurso de um pai (Viggo Mortensen) e o seu filho (Kodi Smit-McPhee) que atravessam uma terra morta, exaurida de seus recursos após um incidente global. O futuro da memória humana em circunstâncias em que o mundo e a espécie estão sucumbindo, elegem o homem como uma potência telúrica responsável pela tragédia universal, que esgotou a vida da Terra, e expõe uma “complexa relação entre o colapso do mundo natural e a desintegração do contrato social” (KAPLAN, 2016, p. 18).

Talvez careçam de “veracidade”, ou mesmo sejam pouco prováveis, os cenários de desfecho da existência como um mundo-sem-nós, que nos direciona para uma derradeira reflexão do fim em um exercício de pensamento do impensável. “O pensamento do fim do mundo suscita necessariamente o problema correlato do fim do pensamento, isto é, o fim da relação (interna ou externa, pouco importa agora) entre pensamento e mundo.” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 32).

Em Melancolia (Melancholia), de 2011, Lars von Trier vislumbra um acontecimento limite, o choque da Terra com um astro desconhecido, nomeado Melancolia, que inevitavelmente vai extinguir toda vida no planeta. A colisão entre os corpos celestes destrói o humano e, junto a ele, tudo o que sabemos (SHAVIRO, 2012, p. 6). Na leitura de Shaviro (2015), apesar de sua visão apocalíptica, Melancolia não é um filme de desastre. “Ele se recusa a nos apresentar um espetáculo grandioso e sublime de destruição” (ibid., p. 2-3) e, ao contrário, é bastante contido e mesmo claustrofóbico, ainda que retrate o fim de tudo. A forma com que o desastre afeta as duas protagonistas, as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg), se delineia como mais importante que o evento cósmico, que se posta como um coadjuvante assertivo. O fim orquestrado por Trier não exige uma pandemia ou guerra para que se extermine o humano, “afinal, este, de fato, já estava sob o risco de uma morte anunciada” e, embora todo o planeta esteja condenado, “o verdadeiro mundo a ser des(cons)truído é o dos seres linguageiros, angustiados, movidos pela pulsão de morte” (MESSIAS, 2019, p. 271).

Os embates entre as declarações de cientistas, negacionistas e os esforços empreendidos por empresários e governantes em minimizar uma catástrofe iminente, conduzem Não Olhe para Cima (Don’t Look Up), 2021, dirigido por Adam McKay. Diante da descoberta de um cometa capaz de aniquilar a Terra, o uso político do conhecimento em uma sociedade individualista remete à leitura realizada por C.S. Lewis em Abolition of Man. Escrito em plena Segunda Guerra Mundial, o livro evoca um desaparecimento do humano a partir de uma perspectiva tecnocientífica e excludente de futuro. Para o autor, no momento que a salvaguarda ou não da espécie é posta como uma opção, já não resta mais valor humano algum a se preservar (LEWIS, 2009, p. 61). “A conquista final do homem provou ser a abolição do homem.” (ibid., p. 64).

A incerteza exigida por hodiernos regimes de “humanidades”, ou “mundanidades”, que destoam daquilo que conhecemos, torna o futuro imprevisível, quando não inimaginável. Os panoramas expostos nas ficções científicas e em escatologias messiânicas excedem a esfera dos devaneios e se mostram como presságios de um futuro que é incalculável pelos instrumentos que dispomos. Pensar o impensável ou imperceptível. O dilema de um pensamento que é, por si só, insuficiente para compreensão de uma realidade, que excede a escala do humano – sua percepção e mesmo sua linguagem – desafia e reconfigura limites para a coexistência da espécie.

Referências bibliográficas

DANOWSKI, Deborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Há um mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2014.

KAPLAN, E. Ann. Climate Trauma: Foreseeing the Future in Dystopian Film and Fiction. London: Rutgers University Press, 2016.

LEWIS, C. S.. The Abolition of Man. New York: HarperCollins e-books, 2009.

MESSIAS, Adriano. Comunicação e Antropoceno: os desafios do humano. São Paulo: Educ, 2019.

MORTON, Timothy. Hyperobjects: Philosophy and Ecology After the End of the World. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.

SHAVIRO, Steven. Melancholia or, the Romantic Anti-Sublime. Sequence, 1.1, 2012. (eBook).

THACKER, Eugene. In the Dust of This Planet. (eBook) Zero Books, 2011.