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Sobre o estar próximo e o “estar” digital

por Fernanda Rezende - publicado 30/08/2021 17:35 - última modificação 13/09/2021 08:56

Por Gabriel Engel Ducatti, mestrando em Filosofia na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus Marília, com bolsa FAPESP. É bacharel e licenciado em Filosofia pela mesma universidade, e bacharel em Direito pelo Centro Universitário Toledo Prudente.

Por Gabriel Engel Ducatti, mestrando em Filosofia na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, campus Marília, com bolsa FAPESP. É bacharel  e licenciado em Filosofia pela mesma universidade, e bacharel em Direito pelo Centro Universitário Toledo Prudente.

Nós, enquanto seres humanos viventes nesse planeta Terra, nunca estivemos tão conectados. Realidades virtuais, redes sociais, internet e smartphones, principalmente na última década, parecem ter dado um outro significado ao “relacionar-se”.

Em uma famosa entrevista/conversa entre Mark Zuckerberg e Yuval Noah Harari, gravada em 2019, o historiador questiona o fundador do Facebook sobre o fato de estarmos cada vez mais interconectados, mas aparentemente cada vez menos em harmonia uns com os outros. Tal questionamento foi posto em um contexto de alta conectividade, principalmente através do mundo digital, em que um dos principais focos políticos era a construção de muros, feitos de pedra, concreto e aço.

Recentemente questionei alguns colegas em um grupo de pesquisa sobre a seguinte reflexão: a internet e as redes sociais têm feito com que nos isolássemos, ficando cada vez mais sozinhos, ou estamos cada vez ficando mais sozinhos, nos isolando, e a internet e as mídias sociais têm se aproveitado disso para preencher “espaços” e “tempos” de nosso dia a dia? De meus e minhas colegas de grupo tive boas respostas, mas, honestamente, a dúvida continua ardendo em mim. Pensar tal problema exigiria uma reflexão aprofundada sobre nossa sociedade, nosso sistema econômico e também sobre as chamadas Big Techs (para o leitor ou a leitora que desconhece o termo, diz respeito às grandes empresas de tecnologias que dominam o mercado atual). Mas meu propósito neste texto é apenas levantar questões e, como “bom filósofo”, não necessariamente respondê-las.

Basta que andemos por aí, seja em transporte coletivo, seja observando as pessoas na rua, para que percebamos o quanto estamos caminhando cada vez mais cabisbaixos, focados em nossos smartphones. Quase não nos olhamos.

Com a necessidade de isolamento social, imposta pelo novo Coronavírus, tivemos que nos isolar ainda mais. O contato humano tornou-se arriscado, prejudicial à nossa saúde e a de quem amamos. Nesses tempos de isolamento, o mundo digital ganhou ainda mais centralidade na promulgação e estruturação de nossas relações humanas; mas, honestamente, que tipos de relações o mundo digital nos possibilita construir? São suficientes?

O olhar do outro sempre me pareceu algo que carregava um certo peso, talvez semiótico, que me faz quase que sentir fisicamente que alguém me olhava. Não são todas as pessoas que conseguem manter um diálogo olho no olho. Eu, com frequência, acabo involuntariamente desviando meu olhar quando em conversas desconcertantes ou com pessoas desconhecidas. Bom, o fato é que, nas constantes reuniões através do Meet ou do Zoom, não há olho no olho: a câmera de nossos aparelhos fica na parte de cima, e olhamos sempre para a tela, mais embaixo. Isso faz com que os olhares não se cruzem, mas, mesmo que se cruzassem, não acredito que haveria o “peso” da presença.

Há um famoso papel de parede padrão do Windows XP, composto de uma fotografia quase não editada de um campo verde e um céu azul repleto de nuvens brancas. Tal papel de parede foi denominado de Bliss, e se trata de uma fotografia tirada em 1996 na Califórnia-EUA por Charles O’Rear. Estima-se que essa imagem tenha sido vista por bilhões de pessoas no mundo.

O que ela intenta representar é um campo verde, céu azul e nuvens brancas, que buscam despertar a ideia de alegria, tranquilidade e natureza. Trata-se, a meu ver, de uma paisagem repleta de vida. Não sei qual foi a intenção da Microsoft ao escolher uma paisagem de um campo gramado sob um céu azul para estampar a tela inicial de seu, à época, principal sistema operacional. Julgo que talvez tenham tentado dar uma certa aparência de familiaridade, de saudável e talvez até de natural. Assim, quando ligávamos o computador com o Windows XP, não víamos letras e números confusos escritos sobre uma tela escura, como o era alguns aparelhos mais antigos, mas sim uma bela paisagem.

O que quero tensionar é: não somos seres fragmentados de nosso ambiente; o ambiente é o todo em que existimos e agimos. Assim, tal paisagem na tela de meu computador antigo é uma representação digital que parece tentar fazer-me crer que não estou mais sentado sozinho na frente de uma tela, mas sim em um outro lugar.

Há um conceito interessante na filosofia ecológica, que apesar de não ter a intenção de trazê-lo com toda sua complexidade, faço uma breve referência apenas para me apropriar de uma ideia que ele representa. O conceito é o de affordances, e basicamente ele denota as possibilidades de ação que o ambiente lhe oferece, ou seja, affordances são informações disponíveis no ambiente que, tanto nós, humanos, como outros seres, captamos cada um a seu modo. Um exemplo recorrente é o da cadeira. Nós, brasileiros do século XXI, ao depararmo-nos com uma cadeira de madeira, de imediato percebemos que há ali uma possibilidade de nos sentarmos. Um pássaro, entretanto, perceberia algo diferente, talvez para pousar ou se apoiar; cupins veriam possibilidades de alimento. As affordances emergem dessas relações sistêmicas entre os organismos e os nichos (ambientes).

O que pretendo refletir ao trazer tal conceito de affordance é sobre as possibilidades de ação da paisagem acima discutida. Caso estivéssemos imersos presencialmente naquele campo na Califórnia, teríamos a possibilidade de nos sentarmos na grama, de corrermos pelo campo, de admirarmos o constante movimento das nuvens, de vermos o céu se escurecer quando a noite fosse chegando. Sentiríamos o vento tocando nossa pele, o cheiro vindo do campo, os insetos nos rodeando, enfim, o que não falta são possibilidades de ação. Mas quando ligamos o computador e nos deparamos com essa imagem, a única possibilidade é olhá-la. Não há um escurecer com o passar do tempo; nela é sempre dia. Parece não haver uma interação sistêmica entre nós, organismos, e o ambiente digital, assim como há nas nossas relações frente a frente, presenciais. Falta, a meu ver, algo. Algo este que falta também quando olhamos uma tela repleta de rostos em nossas quase diárias reuniões online.

Em suma, o que busquei argumentar neste pequeno texto é que as relações e interações digitais, seja com outras pessoas ou paisagens, têm nos possibilitado encontros riquíssimos com pessoas e lugares distantes, mas que não substituem as importantes relações humanas presenciais e o que elas nos possibilitam fazer e construir.

Sei que, por conta da pandemia, o momento é de nos isolarmos fisicamente. Não estou aqui defendendo um fim do isolamento social nem fazendo uma crítica ludista às novas tecnologias, mas, pelo contrário, estou apenas relatando que este momento de intenso distanciamento pode ser um convite a reconhecermos a importância da presença. O estar próximo e o “estar” digital são, a meu ver, modos distintos de nos relacionarmos, cada qual com seus prós e contras, mas que um não deve, hoje, substituir o outro.