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Conceição Evaristo funde Kwanzaa e escrevivência para propor outros mundos possíveis

por Mauro Bellesa - publicado 19/12/2023 10:40 - última modificação 22/12/2023 11:12

A escritora e educadora Conceição Evaristo fez a conferência "Escrevivência e Criação de Mundos Possíveis" na abertura do Festival Kwanzoo-Escrevivência, no dia 13 de dezembro, no Itaú Cultural.

Conceição Evaristo - 13/12/23
Conceição Evaristo: ''Só a reorganização da sociedade e de suas instituições possibilitará a destruição do racismo estrutural''

"Temos a intenção bastante explícita de empretecer espaços brancos com a nossa corporeidade preta em seus múltiplos sentidos. E assim redesenhamos nas linhas fixas das instituições por onde passamos, onde estamos, novos traços, novas marcas, para ajudar a compor o rosto multifacetado da nação brasileira."

Assim a escritora e educadora Conceição Evaristo ressaltou a importância da participação de mulheres negras e homens negros nas mais diferentes instituições do país. Ela fez essa afirmação na conferência Escrevivência e Criação de Mundos Possíveis, com a qual abriu o Festival Kwanzaa-Escrevivência, no dia 13 de dezembro.

Realizado de 13 a 15 de dezembro no Itaú Cultural (abertura) e em três lugares da USP - IEA; Escola de Arte, Ciência e Humanidades (Each); e Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) -, o festival celebrou as atividades ocorridas na Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência durante o um ano e meio em que Evaristo foi sua titular.

Nesse período, ela e os jovens pesquisadores participantes Grupo de Estudos Escrevivência: Corpu(s) Estéticos em Diferença com certeza imprimiram "novos traços, novas marcas" nas linhas que definem a atuação do IEA, da própria USP e do Itaú Cultural, parceiros na implantação e funcionamento da cátedra. Aos trabalhos desenvolvidos pelo grupo de estudos, somaram-se a criação de uma disciplina de pós-graduação, um curso de extensão para docentes de educação básica, seminários, palestras e participação em eventos diversos, sempre com a intenção de promover a reflexão sobre epistemologias afro-diaspóricas.

Celebração, reflexão política, identidades e direitos humanos

Na cerimônia de abertura do festival, o coordenador acadêmico da cátedra, Martin Grossmann, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, saudou a realização como um momento de reflexão crítica e política, além de seu aspecto de celebração: "Estamos festejando um ano e meio de intensas atividades de Conceição Evaristo, sempre com o suporte do jovem grupo de estudos, hoje com 13 integrantes, coordenados por ela e supervisionados por Calila das Mercês. São jovens que devem se tornar líderes em suas áreas; uma das missões da cátedra é a formação de líderes".

O diretor do IEA, Guilherme Ary Plonski, comentou que a Kwanzaa, em sua comemoração anual de 26 de dezembro a 1º de janeiro, ocorre num momento de outras duas celebrações marcantes: o Natal, para os cristãos, e o Hanuká, para os judeus. "Uma das coisas que essas três celebrações têm em comum é o vínculo com a luz, com a luminosidade. E há o simbolismo a partir dos candelabros do Kwanzaa e do Hanuká". No primeiro caso, o candelabro Kinara contém sete velas associadas a igual número de princípios e dias de celebração. O candelabro Hanukiá, com nove velas, é utilizado nos oitos dias do Hanuká, que este ano transcorreu de 7 a 15 de dezembro, terminando exatamente no terceiro dia do festival organizado pela cátedra.

"As três festividades celebram identidades, especificidades e tradições. O Kwanzaa, um termo da lingua suaíli, tem o significado de primeiros frutos da colheita, e o Hanuká, num de seus dois sentidos, significa inauguração, reinauguração, novo começo. Junto com o Natal, as três celebrações, têm outro aspecto comum: marcar que todos somos seres humanos, com razões, emoções e intenções. Digo isso, porque no dia 10 de dezembro, comemorou-se outro fato marcante do mês e ligado às três comemorações: o 75º aniversário da proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas", concluiu.

Também participaram da cerimônia de abertura do festival Jader Rosa, superintendente do Itaú Cultural, e Patrícia Mota, gerente de Educação do Itaú Social.

A reivindicação da presença negra nas instituições é essencial diante do fato de que "desde a saga do trabalho escravo imposto aos nossos antepassados até hoje estamos na base da construção da riqueza material e imaterial do país, que também é nossa e da qual muito pouco usufruímos", afirmou Evaristo.

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Esclarecimento

Leia Nota de Esclarecimento da Diretoria e da Ouvidoria do IEA sobre incidente relatado por Conceição Evaristo no final de sua conferência. O fato envolveu pessoa da equipe do Instituto e pesquisadores do grupo de estudos coordenado pela escritora.

Racismo estrutural

"Sendo reconhecido que o preconceito e a discriminação racial estão consolidados na organização da sociedade brasileira, há de se buscar formas de desestruturar o racismo estrutural que caracteriza as instituições, o pensamento e o imaginário brasileiro em relação ao negro e, podemos dizer, em relação ao indígena", disse.

A seu ver, só a reorganização da sociedade e de suas instituições possibilitará a destruição do racismo estrutural. E essa reorganização "não se realiza nos discursos, por mais progressistas que sejam: é preciso que as palavras se concretizem na prática, no exercício cotidiano de quem tem o poder de decidir, de organizar, de distribuir, de escolher".

Ela destacou que as estruturas de uma sociedade não se organizam por geração espontânea, "embora perdurem como algo naturalizado, como um destino instituído desde sempre". Essa naturalização serve-se até de distorções, que procuram usar o racismo estrutural "como uma desculpa desonesta para não buscar mudanças efetivas nas bases com que se organizou e se mantém a sociedade brasileira", afirmou.

Amalgamar o Kwanzaa com sua pesquisa sobre a escrevivência, conceito criado por ela nos anos 90, foi "um gesto simbólico de retomada de uma dinâmica dos afro-americanos, que, como nós, afro-brasileiros, buscamos compreender e nos apropriar de valores africanos que a memória coletiva preservou na diáspora, apesar da violência da escravização".

"Pensar a escrevivência como suporte teórico, desenvolvendo pesquisa em vários campos de conhecimento, cujos objetos estão marcados pela experiência de sujeitos negros, na qual guardamos consciente ou inconscientemente uma memória negra relativa aos povos africanos e à diáspora negra nas Américas, é também promover em solo brasileiro o nosso Kwanzaa", disse.

A escrevivência é um conceito e uma prática de criação de discurso que hoje está apropriada por outras formas de conhecimento, além da produção literária, explicou. "É uma ideia que nasce sob a perspectiva de uma busca intelectual de uma mulher negra oriunda das classes populares".

Origem

Evaristo relatou que começou a usar o termo em 1995, quando redigia sua dissertação de mestrado “Literatura Negra: Uma Poética de Nossa Afro-Brasilidade”, defendida em 1996 na PUC-RJ (no segundo semestre de 2009, a revista Scripta, da PUC Minas, publicou ensaio homônimo em que ela retomou os temas abordados na dissertação).

Ela explicou que o trabalho consistia na produção de um panorama sobre a autoria negra de poesia a partir, principalmente, das publicações do grupo paulista QuilombHoje, constituído por homens e mulheres em sua maioria negros, que em 1978 passou a publicar a série Cadernos Negros, com contos e poesias de autores afrodescendentes.

"Comecei a observar que havia uma mesma dicção, uma fusão entre o eu poético, que se pronunciava como negro, e o sujeito autoral, homens negros e mulheres negras. O sujeito autoral se inscrevia no próprio poema, se via no próprio poema, vivia o próprio poema. Era como escreviver o corpo negro", observou.

Ela trabalhou com poemas das décadas de 70 e 80. Naquele momento era "muito necessário nos pronunciarmos como negros". Havia um movimento, principalmente da literatura, para "retirar certa carga negativa da palavra negro, que era usada para dizer dizer coisas como 'negro sujo, negro vagabundo'; quando queria brigar com um negro, o branco geralmente usava essa palavra".

Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus, referência como autora de escrevivência
"Tirar todo sentido negativo da palavra e positivá-la etnicamente fazia parte do projeto estético da construção de um texto. Por isso minha geração de poetas não usava a palavra preto. Preto era eufemismo. Então sempre usávamos a palavra negro, uma palavra que minha geração ainda usa.”

Evaristo disse que na ocasião nem tinha percebido que havia usado a palavra escrevivência. "Foi o professor Eduardo de Assis, da UFMG, que me apontou que eu usara a palavra na frase "A escrevivência do corpo negro é realizada não só pela apresentação física desse corpo em si.”

A catedrática afirmou que a produção literária de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), principalmente "Quarto de Despejo", "Diário de Bibita", "Casa de Alvenaria" e os poemas, pode ser caracterizada como escrevivência.

Língua portuguesa

Ao tratar da influência dos negros e negras escravizados até mesmo na lingua portuguesa, Evaristo exibiu a foto de 1860 tirada por João Ferreira Villela onde aparecem o menino Augusto Gomes Leal e sua ama de leite Mônica. "As considerações feitas por Gilberto Freyre sobre o diferencial da língua portuguesa falada no Brasil apontam para o papel para isso desempenhado pelas línguas africanas e mães pretas no interior da casa grande." Ressalvou, no entanto, que a valorização dessa mãe preta em "Casa Grande & Senzala" chega a tomar um ar romântico, como “se essa mãe preta tivesse escolhido aquele filho branco”.

Evaristo disse que a semântica do conceito de escrevivência vem daquela situação histórica, de mulheres negras escravizadas que tinham que contar estórias para adormecer as pessoas da casa grande: "Eram corpos inscritos na economia da produção, pois geravam lucro, na economia do prazer, pois eram tomadas pelo senhor quando ele quisesse, e na economia da educação, pois as crianças passavam muito mais tempo com essa mãe preta, aprendiam a falar com ela. Em Freyre, há uma metáfora muito bonita: era como se essa mulher pegasse a língua portuguesa, mastigasse e misturasse com sua própria dicção e colocasse essa língua mastigada na boca da criança".

Estórias para incomodar

Augusto Gomes Leal com a Ama de Leite Mônica
Augusto Gomes Leal com a Ama de Leite Mônica (1860) - Cartão de visita do fotógrafo João Ferreira Villela

Mas o que a escrevivência tem a ver com isso? "Se essas mulheres eram obrigadas a contar estórias para adormecer as pessoas da casa grande, nossas estórias não são para niná-las, mas sim para incomodá-las em seus sonos injustos", pontuou.

A escritora ressalvou que a escrevivência não se confunde com a escrita narcísica, pois a primeira coisa que vem à mente ao falar desse tipo de escrita é o espelho de Narciso, que "não guarda nossa face, não reflete aquilo que somos, pelo contrário, expulsa nossa face. A beleza negra, o corpo negro, a dignidade negra não transparecem no espelho de Narciso. Para Narciso, nós não somos belos".

Ela tem proposto a busca de outros espelhos, como aqueles das narrativas míticas negras e africanas, caso dos espelhos de Oxum e de Iemanjá. "O de Oxum é aquele que nos confere dignidade, que permite que descubramos nossa beleza, que nos constrói, que nos acolhe. O espelho de Narciso aponta para uma passividade, de alguém que se perde em si, embevecido por sua imagem. O de Oxum é também uma arma, ela o leva para a luta. E ao contemplar o espelho, ela vê também os inimigos que estão atrás dela."

"Depois de construirmos nossa dignidade com o espelho de Oxum, temos o espelho de Iemanjá, aquela que cria, que cuida, que é exemplar no sentido de olhar para a comunidade. E nisso há outra diferença: a escrita de si, narcísica, é uma escrita que contempla, apresenta uma voz que se esgota em si mesma; a escrevivência é sempre eu/nós. Isso nos distancia da autoficção, da escrita narcísica, da escrita de si", disse.

Fotos (a partir do alto): Martin Grossmann/IEA-USP; domínio público; Coleção Francisco Rodrigues/Fundação Joaquim Nabuco