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As humanidades digitais e a interdisciplinaridade

por Mauro Bellesa - publicado 05/09/2016 10:45 - última modificação 05/09/2016 15:25

A diretora do Trinity Long Room Hub, instituto de pesquisa em artes e humanidades do Trinity College Dublin, fez conferência no dia 24 de agosto sobre as humanidades digitais como exemplo da importância do trabalho interdisciplinar.
José Teixeira Coelho Netto, Jane Ohlmeyer e Guilherme Ary Plonski

José Teixeira Coelho Netto (à esq.), Jane Ohlmeyer e Guilherme Ary Plonski

Há muito tempo é raro encontrar uma pesquisa nas ciências naturais que não envolva equipes interdisciplinares e a utilização de tecnologias digitais. Mas a ênfase nesses aspectos não é exclusividade das ciências naturais e está cada vez mais presente nas ciências sociais e nas humanidades.

Foi para falar disso que o IEA recebeu no dia 24 de agosto Jane Ohlmeyer, professora de história moderna e diretora do Trinity Long Room Hub (TLRH), instituto de pesquisa sobre artes e humanidades do Trinity College Dublin (também chamado de Universidade de Dublin), da Irlanda.

A conferência O Poder da Pesquisa Interdisciplinar: O Exemplo das Humanidades Digitais teve como debatedor José Teixeira Coelho Netto, coordenador do Grupo de Estudos Humanidades Computacionais do IEA. A coordenação foi de Guilherme Ary Plonski, vice-diretor do instituto.

Essa foi a sexta visita de Jane ao Brasil. As relações dela com a USP devem-se à interação que mantém com pesquisadores da Cátedra de Estudos Irlandeses W.B Yeats do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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A historiadora relatou sua experiência num trabalho interdisciplinar característico do que pode ser feito nas humanidades digitais. Trata-se do projeto 1641 Depositions, fruto da colaboração de pesquisadores das artes, humanidades, ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Jane também apresentou uma visão geral do TLRH (leia texto no box).

Trinity Long Room Hub

Um institiuto dedicado à
pesquisa em artes e humanidades

Criado em 2010, o Trinity Long Room Hub (TLRH) é o instituto de pesquisa sobre artes e humanidades do Trinity College Dublin, Irlanda. É um dos quatro institutos de pesquisa da universidade (os outros são dedicados a neurociências, biotecnologia e nanotecnologia).

O nome do TLRH provém da tradicional Long Room da biblioteca da universidade, fundada em 1652 (veja foto abaixo).O objetivo foi marcar os vínculos com a biblioteca e expressar a importância de suas coleções para as atividades da comunidade acadêmica.

Os estudos para a criação do TLRH foram realizados de 2006 a 2008, ano em que o governo irlandês concedeu € 10,8 milhões (R$ 39,2 milhões) para sua implantação.

A sede do instituto tem uma arquitetura marcante e foi instalada no centro da parte histórica do campus da universidade. Essa localização destacada significa, de acordo com Jane Ohlmeyer, sua diretora, "a centralidade do papel desempenhado pelas artes e pelas humanidades na universidade e na sociedade".

O TLRH tem nove escolas da universidade como parceiras. Elas apoiam o desenvolvimento de temas de pesquisa prioritários e abrangentes. Também lideram projetos colaborativos dentro da universidade e em parceria com outras instituições, irlandesas ou de outros países.

Além de um staff acadêmico permanente de seis pessoas, o instituto reúne cerca de 60 pesquisadores atuando ao mesmo tempo (pós-graduandos, pós-doutores e pesquisadores visitantes).

Cerca de 100 pesquisadores visitantes de 39 países diferentes passaram por ele nos últimos cinco anos (as inscrições para o programa 2017-2018 estarão abertas de 5 de setembro a 31 de outubro).

O programa para pesquisadores visitantes objetiva fortalecer a participação do instituto em redes internacionais de pesquisa e colocar os pesquisadores da universidade em diálogo com o que há de melhor em seus respectivos campos de atuação.

O TLRH tem cinco temas abrangentes como prioridade: "Construindo a Irlanda”, “Identidades em Transformação”, “Culturas do Manuscrito, do Livro e da Impressão”, “Humanidades Digitais” e “Prática Artística.

Ao longo do ano, o instituto realiza em torno de 150 eventos acadêmicos (conferências, seminários e aulas públicas), com o objetivo de ampliar a visibilidade e o impacto de suas pesquisas. "Muitos dos eventos tratam de temas de interesse da sociedade, pois queremos ser uma referência para os formuladores de políticas públicas."

Segundo Jane, a preocupação do instituto é promover três aspectos: excelência, interdisciplinaridade e engajamento público. "Digo aos colegas da universidade que continuem eu seus departamentos se quiserem fazer uma pesquisa de sua área; que venham para o instituto apenas se quiserem fazer algo diferente e colaborar na intersecção de disciplinas. Correrão riscos, mas somos um lugar seguro para correr riscos."

Ela afirmou que o instituto procurar encorajar os pesquisadores de artes e humanidades a conversar com os colegas da computação, física,  ciências da natureza, neurociências, saúde, matemática. "Isso faz com que surjam muito programas interessantes em humanidades ambientais, humanidades em saúde e humanidades digitais."

O TLRH é visto de forma muito positiva pela universidade, "uma vez que a área de artes e humanidades do Trinity College Dublin é a de maior prestígios nos rankings internacionais".

Jane afirmou que custou muito trabalho para o instituto chegar a esse patamar de prestígio e nele se manter, "sendo preciso ser aprovado em várias avaliações e empreender uma luta constante em busca de recursos".

O TLRH é um dos institutos integrantes da rede Ubias (University-Based Institutes for Advanced Study), da qual o IEA também faz parte.

Biblioteca do Trinity College DublinA Long Room da biblioteca do Trinity College Dublin

Infraestrutura e redes

A construção de uma ampla infraestrutura para humanidades digitais na Irlanda e em conexão com o panorama europeu da área foi uma condição fundamental para o sucesso projeto 1641 Depositions, segundo Jane: "Percebi isso desde do início do desenvolvimento do projeto, uma década atrás".

Ela afirmou que as humanidades digitais estão bastante desenvolvidas na Europa e que a referência é a América do Norte, que "está um passo à frente".

Uma das 12 principais infraestruturas estratégicas de pesquisa para humanidades digitais da Europa, segundo Jane, é o programa de Infraestrutura de Pesquisa Digital em Artes e Humanidades (Dariah, na sigla em inglês), segundo Jane. "É algo no nível do Cern ou dos grandes telescópios apoiados pela Comissão Europeia, não em termos de recursos, pois estes demandam mais, mas em termos de políticas no cenário científico. É uma federação de infraestrutura de pesquisa através da Europa."

De acordo com Jane, o governo irlandês decidiu apoiar as humanidades digitais porque havia falta de coordenação e estratégia na área, algo que contrastava com a forte presença no país de empresas de tecnologia de informação e comunicação, como Intel, Google, Twitter e IBM.

Além de ser estabelecida uma coordenação e incentivada a colaboração entre instituições de pesquisa, foi promovido o engajamento com iniciativas europeias, como a Dariah, e a participação do setor produtivo (o 1641 Depositions teve a colaboração da IBM).

A historiadora considera que os pesquisadores deveriam atentar para esse novo panorama nas humanidades, levando em consideração:

  • o acesso a um vasto conjunto de fontes primárias, sobretudo manuscritos e material impresso;
  • o acesso ao conhecimento, expertise, metodologias e práticas de várias áreas;
  • a adoção de padrões e melhores práticas;
  • a possibilidade de preservação das informações a longo prazo e de forma sustentável;
  • a realização de experimentos e inovação em parceria com pesquisadores de múltiplas áreas e disciplinas.

 

Modelo

Na conferência, ela utilizou o projeto 1641 Depositions como caso-modelo: "Esses documentos são considerados os mais controvertidos da história irlandesa; trata-se de uma fonte única de informações sobre as causas e os eventos relacionados com a rebelião de 1641 na Irlanda contra a Inglaterra, quando dezenas de milhares de pessoas morreram, e para a história social, econômica, cultural, religiosa e política do país".

Segundo Jane, os 31 volumes de manuscritos com 8 mil testemunhos de homens e mulheres protestantes sobre os eventos relacionados com a rebelião ficaram guardados por centenas de anos na biblioteca do Trinity College Dublin. "Ninguém tinha acesso a eles. Só foram usados no passado para propaganda anticatólica." Os testemunhos tratam de perda de bens e posses, atividade militar e os alegados crimes dos rebeldes irlandeses, incluindo assassinatos, aprisionamentos, agressões e até desnudamento de pessoas.

A primeira constatação da equipe do projeto foi de que seria necessário obter € 1 milhão (cerca de R$ 3,63 milhões) para realizá-lo. Os recursos foram obtidos com o governo irlandês, universidades britânicas (Cambridge e Aberdeen) e a colaboração da IBM.

O projeto propiciou cuidados com a conservação dos manuscritos e sua digitalização, transcrição, transformação em texto digital e publicação online, "mas como não confio totalmente no mundo digital, decidi publicá-los também em papel", disse a pesquisadora.

Jane afirmou que a execução do projeto foi um desafio estimulante para cientistas de computação, pois "eles adoram o desafio de trabalhar com o que chamam de 'dados sujos'. No caso dos manuscritos, a 'sujeira' consistia em falta de consistência e previsibilidade em tudo (uso de maiúsculas, pontuação, ortografia, sintaxe e semântica).

Outras características do projeto, segundo ela, eram o fato de o domínio da área estar restrito a historiadores do século 17, sem a participação de cientistas da computação ou linguistas computacionais, e a dificuldade em capturar dados semiestruturados, estruturados e desestruturados.

O projeto teve a participação de 17 especialistas em história, computação, física, matemática, linguística, geografia, literatura, estudos de gênero, biblioteconomia, arquivologia e conservação, com apoio da IBM, que forneceu um software de análise de linguagem natural.

Lançado em 2010, o site do projeto conta atualmente com 23 mil usuários cadastrados de várias partes do planeta.

Jane afirmou que o 1641 Depositions se tornou o projeto-líder em humanidades digitais porque foi feito em alto nível, recebeu vários recursos da Europa e expandiu-se para outros projetos em humanidades digitais. "A iniciativa derivada mais importante é o programa Cultura, que trata da normalização de textos do século 17 em inglês e sua adequação ao inglês moderno. Outro resultado foi o 1641 na Sala de Aula. Várias outras pesquisas relacionadas a ele também já foram realizadas e apresentadas em diversas publicações."

Lições

De acordo com a historiadora, as principais lições aprendidas durante o desenvolvimento do projeto 1641 Depositions foram:

  • a tecnologia é transformadora mas não substitui a leitura do documento e seu contexto;
  • infraestrutura e padrões são de importância fundamental:
  • é preciso fazer algo sustentável, que possa migrar, ser atualizado e acessível no futuro, para não resultar em um depósito digital;
  • o sistema deve ser desenvolvido de maneira tão boa como os dados, para não perpetuar erros.
  • a agilidade em identificar dados é essencial para a formulação de novas questões numa pesquisa;
  • reciprocidade: é preciso um grande respeito, confiança e dependência entre os especialistas de diversas áreas envolvidas.

 

Debate

Após a conferência, Teixeira Coelho quis saber de Jane quais são as reais mudanças que as tecnologias digitais promovem nas humanidades, no modo de funcionar e educar das universidades. Ela respondeu ter percebido que as humanidades digitais eram algo específico quando o Trinity College Dublin passou a citá-las nos anúncios para a contratação de professores. "Notei que elas constituíam uma área específica. Atualmente há seis professores que são humanistas digitais na universidade."

Martin Grossmann, ex-diretor do IEA, onde coordena o Grupo de Pesquisa Fórum Permanente – Sistema Cultural entre o Público e o Privado, comentou o problema da avaliação institucional e de pesquisadores por meio de sua produção digital: "A USP promoveu um processo de avaliação em 2015 e o site do IEA não foi considerado relevante pelas pessoas convidadas a avaliar o Instituto. Estamos longe de as pessoas começarem a utilizar estatísticas para a avaliação de plataformas digitais". Ele perguntou a opinião de Jane sobre isso em relação a Irlanda e à Europa.

Jane disse que ainda há o problema de avaliação da produção da área para a progressão na carreiras dos pesquisadores: "Ela ainda é feita a partir de material impresso, artigos avaliados por pareceristas. Os avaliadores não estão interessados em publicações digitais. Acho que ainda há um longo caminho para que esses resultados digitais passem a ser considerados publicação acadêmica séria."

Arlindo Phillipi Jr., ex-diretor de Avaliação da Capes, fez comentários sobre o crescimento no número de propostas de programas de pós-graduação interdisciplinares no Brasil e como elas são avaliadas. Para ele, a dificuldade ainda é a falta de avaliadores aptos a analisar esse tipo de proposta, ainda que eles sejam grandes especialistas em suas disciplinas: "Existe uma necessidade permanente de trabalhar com nossos colegas, tentando inserir a ideia de que o que está em questão é resolver o problema que vamos pesquisar, não a disciplina que vamos usar. É preciso verificar que disciplinas teremos que reunir para ter o problema muito bem explicado, como encontrar soluções para ele e qual estratégia, multi ou interdisciplinar, a ser utilizada."

"Temos novos doutores no Brasil formados num perfil interdisciplinar. Eles ainda enfrentam problemas quando concorrem por vagas em algumas universidades, mas como seu número está crescendo, estamos atingindo um novo equilíbrio de forças. Eles têm demonstrado que é possível fazer boa pesquisa nesse novo perfil. O problema é que ainda há poucos periódicos interdisciplinares no país."

Em relação à pesquisa interdisciplinar, ela disse que há dois pontos a serem analisados: esse tipo de trabalho leva tempo, porque não é fácil, por isso merecem mais compreensão das agências de fomento, que precisam conceder mais tempo para sua execução, sobretudo para a apresentação dos resultados; o outro ponto é a dificuldade de avaliação: "Não sabemos como avaliar uma proposta interdisciplinar; é difícil encontrar alguém que se sente igualmente confortável em várias disciplinas".

Para Plonski, talvez seja necessário um outro vocabulário para tratar da questão: "Quando se usa inter, multi e transdisciplinaridade ainda estamos presos ao paradigma, à âncora da disciplinaridade". Ele disse que Simon Schwartzman defende em um de seus trabalhos que há dois modos de produção do conhecimento: um é baseado no paradigma da disciplina e envolve uma agenda específica, grupos estáveis, planos de carreira, hierarquia e outros fatores; o outro é motivado pelos problemas a serem resolvidos e envolve grupos temporários, alternância de liderança, desierarquização e outros componentes.

O antropólogo Massimo Canevacci, ex-professor visitante do IEA, comentou que precisou mudar sua metodologia de pesquisa com os índios bororo no Mato Grosso porque eles já estão habituados à utilização de tecnologias digitais. Diante desse grau de presença dessas tecnologias na sociedade, Canevacci perguntou a Jane se as humanidades digitais terão impacto além do ambiente acadêmico. Para ela, pelo que observa na Irlanda e na Europa, as humanidades digitais estão se tornando uma parte da linguagem da herança cultural. Ela citou como exemplo disso o programa Cultura, que tem entre seus objetivos criar ferramentas de internet para serem usadas especialmente por museus e galerias de arte.

Jane também foi questionada sobre o dilema entre utilizar recursos na conservação de fontes de informação físicas (manuscritos, livros, obras de arte) ou na sua digitalização. Para ela, se não houver outra opção, deve-se investir na preservação, pois o material pode se deteriorar em cinco ou dez anos, ficando inapropriado para digitalização.

Foto: Leonor Calazans/IEA-USP; Trinity College Dubllin