Você está aqui: Página Inicial / NOTÍCIAS / Cientista político examina mais de 3 mil operações de combate à corrupção

Cientista político examina mais de 3 mil operações de combate à corrupção

por Mauro Bellesa - publicado 16/05/2019 12:30 - última modificação 25/07/2019 10:47

Em sua participação no Programa Ano Sabático do IEA, edição 2019, o cientista político Rogério Bastos Arantes, da FFLCH, desenvolve o projeto de pesquisa Corrupção Política e Crime Organizado no Brasil.

Rogério Bastos Arantes - 2018
Rogério Bastos Arantes: 'Mudanças no MPF, PF, Justiça Federal e no próprio sistema que integram remodelaram a jurisdição criminal relacionada à corrupção política e ao crime organizado''
Conhecer as causas da corrupção política e do crime organizado a ela associado no Brasil, bem como a forma que operam os órgãos destinados ao seu combate, é algo que requer uma compreensão desde os microfundamentos da ação racional, passando pelo peso do patrimonialismo na formação histórica do país até os efeitos do desenho institucional e das organizações sobre o comportamento dos atores dos delitos, segundo o cientista político Rogério Bastos Arantes, professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Arantes é um dos participantes do Programa Ano Sabático do IEA em 2019, no qual desenvolve o projeto de pesquisa Corrupção Política e Crime Organizado no Brasil.

Para ele, no entanto, a compreensão dos componentes vinculados às causas da corrupção e do crime organizado no país não pode se dar apenas à luz de um teoria positiva, caracterizada pela explicação de processos e instituições a partir de premissas realistas sobre o comportamento humano e mediante recursos e técnicas de pesquisa e validação de resultados endereçados à busca de generalizações: “Esse trabalho deve ser igualmente inspirado pelas promessas democráticas a realizar”.

Banco de dados

O levantamento das condenações produzidas pelo sistema penal, a análise de casos relatados pela mídia e as pesquisas feitas com cidadãos e especialistas são os três tipos de pesquisa utilizados para contornar as dificuldades de mensurar diretamente a corrupção, segundo a literatura examinada por Arantes. Seu projeto se enquadra no segundo tipo, mas vai além do simples levantamento das condenações, “pois reunirá informações sobre o fenômeno desde as fases iniciais da investigação criminal e as organizará na forma de um grande banco de dados qualitativos”.

Relacionado

Programa Ano Sabático 2019

Notícias

Serão analisadas as mais de 3 mil operações empreendidas pela Polícia Federal (PF) e pelo Ministério Público Federal (MPF) entre 2003 e 2017. O objetivo é mapear delitos relacionados com a corrupção política e examinar o desempenho das principais instituições envolvidas no combate a essas práticas criminosas, especialmente o MPF, a PF e a Justiça Federal.

De acordo com Arantes, o mapeamento “poderá resultar numa nova tipologia empírica das atividades estatais e governamentais e das econômicas privadas mais sujeitas à corrupção política e ao crime organizado”. Ele avalia que o resultado desse trabalho será o quadro mais abrangente que se tem notícia dessas ações criminosas.

Instituições

O estudo também propiciará o conhecimento sobre as bases institucionais e organizacionais de atuação dos órgãos encarregados da investigação, acusação e julgamento de tais crimes, explica o pesquisador. Polos constitutivos do sistema penal, o MPF, a PF e a Justiça Federal “passaram por deslocamentos significativos, que remodelaram a jurisdição criminal relacionada ao combate à corrupção política e ao crime organizado”, explica.

Em seu conjunto, a pesquisa exigirá abordagem interdisciplinar, mobilizando especialmente as áreas da ciência política e do direito. Os principais resultados do trabalho serão objeto de ao menos um artigo científico. Arantes também pretende esboçar um livro sobre os temas da pesquisa. O banco de dados de acesso público será estruturado depois das publicações e terá atualização permanente, para que “estudos e análises possam ser replicados, novas hipóteses possam ser testadas e novas teorias arriscadas”.

Arantes deve proferir duas conferências, uma em cada semestre de 2019, e organizar um seminário ao final de seu período sabático, com a participação de pesquisadores e lideranças públicas preocupadas com o tema da pesquisa.

Dados quantitativos

O banco de dados sobre as mais de 3 mil operações começou a ser construído em 2018 e utiliza como fonte os resumos das operações feitos pela Polícia Federa. Lacunas e incongruências de informações têm sido solucionadas por meio de pesquisa em sites oficiais de outras instituições envolvidas nas operações (MPF, Ibama, INSS, Controladoria Geral da União, Tribunal de Contas da União, Receita Federal etc.), de associações profissionais (especialmente as vinculadas à PF, como a Associação de Delegados de Polícia Federal) e também da grande imprensa.

Para o exame da dimensão organizacional, Arantes utiliza os dados disponíveis sobre a renovação de quadros e do aparato técnico e de força da PF ocorrida nos últimos anos.

Segundo ele, a análise preliminar das primeiras 600 operações do período estudado revelou a ocorrência de mais de 50 tipos de crimes, com 23% delas relacionadas com crimes de corrupção e 16% apontando funcionários públicos envolvidos em outros tipos de crimes que precisam do apoio de práticas corruptas. Outra informação já coligida foi de que de 2003 a 2015, nada menos que 24.923 prisões provisórias foram executadas em 2.866 operações.

“Mediante autorizações judiciais e sob fiscalização ou participação ativa do MPF, a PF já desencadeou centenas de operações contra políticos corruptos em todos os níveis da federação e em todos os ramos de governo. Também já atingiu juízes e policiais de todas as corporações existentes no país, inclusive dela própria. De funcionários do INSS ao Ibama, do TCU a Departamentos Estaduais de Trânsito, as operações atingiram servidores corruptos nos mais diversos pontos da administração pública.”

De acordo com Arantes, até agora, a operação Lava Jato já realizou quase mil mandados de busca e apreensão, executou mais de duzentas conduções coercitivas e cumpriu 115 prisões preventivas e 121 temporárias. “Somadas as penas dos condenados até o momento, inclusive do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Lava Jato já alcançou quase 2 mil anos em condenações.”

Ainda que o acervo inédito de informações reveladoras do perfil e da extensão dessas práticas no Brasil propicie o conhecimento apenas dos casos em que as ações da PF e do MPF obtiveram algum efeito, “trata-se do maior volume de dados já produzido no país sobre tais práticas criminosas”.

Informações qualitativas

Entrevistas aprofundadas e o estudo de casos exemplares propiciarão informações qualitativas para a pesquisa.  Serão entrevistados delegados da PF e procuradores da República, com ênfase no conhecimento sobre os crimes investigados e na abordagem de alterações do sistema institucional.

Integrantes de outras instituições que atuaram em forças-tarefa com a PF também serão entrevistados. Nesse caso, o objetivo é avaliar a hipótese de adensamento institucional no interior da rede de instituições de accountability (responsabilização).

A análise de casos exemplares buscará avaliar a efetividade processual penal das operações. Nesses estudos, além dos agentes mencionados, também serão entrevistados magistrados. Processos judiciais serão selecionados para estudos de casos, de modo a verificar se os obstáculos próprios da triangulação do sistema judicial penal foram de fato superados ou não e se o sistema passou a operar com maior grau de efetividade.

Mudanças

Arantes identifica três deslocamentos significativos pelos quais passaram o MPF, a PF, a Justiça Federal e o próprio sistema que integram a partir da década passada. Essas mudanças “remodelaram a jurisdição criminal relacionada à corrupção política e ao crime organizado”.

Uma delas foi o fato de as ações de improbidade administrativa, “eleitas nos anos 1990 como estratégia dominante de promotores e procuradores no combate à corrupção”, terem dado lugar na década de 2000 às investigações policiais e ações penais da corrupção como crime comum, de acordo com o pesquisador.

Outra alteração nos anos 2000 foi o protagonismo ter passado dos ministérios públicos estaduais para os órgãos federais, notadamente a PF, o MPF e juízes federais.

A terceira mudança tem a ver com a interação entre os órgãos: “a histórica desarticulação das instituições que compõem o sistema penal cedeu lugar a um maior adensamento de suas relações recíprocas, ressignificando as formas de investigação, acusação e julgamento nesse campo”.

A hipótese de Arantes sobre esses três deslocamentos tem natureza institucional e organizacional. No primeiro caso, “as mudanças podem ser explicadas pelo desenho institucional capaz de propiciar resultados mais efetivos nas esferas criminal e federal”. Essa efetividade “depende também da motivação endógena e do empenho das organizações no aumento da eficácia de suas ações e no adensamento de suas relações recíprocas, no interior da rede de accountability, com vistas a superar o isolamento e a imprimir maior consequência às atividades de combate à corrupção”.

“Considerando o período de pouco mais de uma década, com operações quase diárias, é difícil encontrar paralelo na política comparada com outros países. Além disso, a busca de maior efetividade no combate à corrupção e ao crime organizado pela ação concertada de policiais, procurado e juízes representa uma das grandes novidades do Brasil contemporâneo.”

Neopatrimonialismo

“Num país de formação patrimonialista, no qual a modernização econômica e do Estado não foi precedida e nem mesmo acompanhada por novas relações de poder baseadas no princípio liberal do contrato, o arcaico convive com o moderno como neopatrimonialismo ou patrimonialismo burocrático”, na definição de Simon Schwartzman, comenta Arantes.

Na verdade, segundo o pesquisador (baseado nos estudos de Edson Nunes), “a modernização brasileira incompleta e contraditória teria legado um conjunto de quatro ‘gramáticas’ que organizam as relações entre o Estado e a sociedade: convivem lado a lado o clientelismo, o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos”.

Num país constituído historicamente dessa maneira, “a corrupção política não poderia deixar de ser endêmica e de se fazer presente nas mais diversas instâncias de poder e de representação”. Para ele, num cenário como esse,” em que agentes privados se organizam para capturar renda e políticos e burocratas controlam volumosos recursos, está dada a oportunidade para a prática da corrupção”.

Debate público

“Apesar dessas dificuldades, devemos reconhecer que desde a redemocratização do país, os problemas de corrupção e do crime organizado têm ocupado lugar central no debate público, envolvido as instituições representativas, sido permanentemente observados pela mídia, ocupado a atenção da opinião pública em épocas eleitorais e fora delas e tem mobilizado atores da sociedade civil e mesmo organismos internacionais em missão no país, levando à promoção de mudanças legislativas e a firmar tratados nos quais se reconhece a necessidade de combatê-los.”

Arantes destaca que a evolução institucional dos órgãos do país e do sistema como um todo de combate à corrução: “Novos métodos de investigação associados a novos dispositivos legais e a mecanismos de cooperação internacional têm propiciado ações incisivas dos órgãos de investigação. Some-se a isso uma nova postura da magistratura federal, que se coloca mais ao lado MPF e da PF do que como seu contraponto, e tem-se o combate à corrupção e ao crime organizado em escala jamais vista no país”.

De acordo com o pesquisador, seu projeto se inscreve na trajetória analítica dos estudos que buscaram demonstrar que a consolidação definitiva da democracia nos países da terceira onda de democratização (conforme estabelecida Samuel Huntington) dependeria de avanços para além da simples competição eleitoral e da alternância de poder. “Dentre esses estudos, destacam-se aqueles que investigaram as conexões entre corrupção, confiança institucional e adesão ao regime democrático”, afirma Arantes fazendo referência aos trabalhos do cientista político José Álvaro Moises, professor sênior do IEA, onde coordena o Grupo de Pesquisa Qualidade da Democracia.

Foto: Fernanda Rezende/IEA-USP