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Universalização do acesso, novas fontes de recursos e reorganização do SUS são principais demandas da saúde

por Mauro Bellesa - publicado 03/10/2018 16:10 - última modificação 17/10/2018 10:25

O quinto seminário do ciclo "Eleições 2018 - Propostas para o Brasil" tratou do tema "Saúde". O evento realizou-se no dia 28 de setembro, na sede do IEA.
Mário Scheffer, José Eduardo Krieger e Drauzio Varella - 28/9/2018
Mário Scheffer (à esq.) e Drauzio Varella foram os expositores no encontro coordenado por José Eduardo Krieger (centro)

As dificuldades de acesso a serviços de saúde de qualidade é a principal preocupação dos brasileiros, de acordo com a maioria das sondagens de opinião sobre os problemas do país. O governo a tomar posse em 1º de janeiro terá de lidar com essa demanda premente num quadro de profunda crise fiscal.

Para contribuir com a formulação de políticas que levem a um melhor atendimento da população, o ciclo Eleições 2018: Propostas para o Brasil tratou em seu quinto e último seminário, realizado no dia 28 de setembro, das condições da saúde no país, especialmente do Sistema Único de Saúde (SUS), e das mudanças que se fazem necessárias.

Com a presença de vários especialistas no tema na audiência, o encontro teve como expositores o oncologista Drauzio Varella, médico com atuação destacada, inclusive no sistema prisional, além de escritor e divulgador científico, e o especialista em medicina preventiva Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). A coordenação foi do fisiologista José Eduardo Krieger, membro do Conselho Diretor do Instituto do Coração (Incor) e ex-pró-reitor de Pesqusia da USP.

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Primeiro expositor, Varella discutiu vários aspectos das cinco medidas que julga fundamentais para a melhoria da saúde no país: estender o programa Estratégia Saúde da Família para todos os brasileiros; organizar a atenção básica para ser a porta de entrada do doente no sistema; transformar os pequenos hospitais em ambulatórios; aumentar o financiamento do SUS; e concentrar o foco na prevenção.

Para ele, os constituintes agiram "de forma demagógica” ao estabelecer que a saúde é um dever do Estado, “pois além de ser preciso dinheiro para isso, a saúde é dever do cidadão, que é infantilizado quando lhe é tirada essa responsabilidade".

De qualquer forma, ele considera que a atuação do SUS desde sua criação há 30 anos propiciou um salto qualitativo na saúde que vai ficar para sempre. "É o maior programa de distribuição de renda do país. O Bolsa Família não é nada perto dele. O problema é que não temos dinheiro suficiente para 200 milhões de pessoas. Gastamos per capita pouco mais que a Namíbia gasta. O sistema precisa de um financiamento decente.”

Não basta ter mais recursos, no entanto, afirmou Varella: “Os EUA gastam 18% do PIB com saúde, mas a expectativa de vida os americanos é de 78 anos e vem caindo. Um catarinense vive mais do que um americano." Segundo ele, isso deve-se ao fato de os serviços de saúde serem um ramo da economia em que quanto mais tecnologia, mais os gastos sobem.

São poucos os médicos generalistas, que são os mais importantes e por meio dos quais o paciente deveria entrar no sistema de atendimentos, afirmou.  Além disso, “o sistema é perdulário por falta de organização”.

"A atenção básica precisa ter um fluxo conhecido. O agente de saúde deveria saber para onde mandar o doente e auditar o sistema, procurando saber como o ele foi atendido. Há repetição de exames e sobreposição de procedimentos, e não há prontuário eletrônico."

Depois da atenção básica, o doente precisa de atenção mais complexa, mas 77% dos municípios possuem menos de 20 mil habitantes, com pouco estrutura para ter hospitais, segundo Varella. Um hospital viável economicamente tem entre 150 e 200 leitos, mas em geral eles têm menos de 50 leitos.

As prefeituras vivem de recursos da União e não conseguem manter os hospitais, que deveriam virar ambulatórios, de acordo com o oncologista. “O que não pode é não haver uma regionalização: se precisa de um atendimento mais complexo, o paciente deve ser levado para um hospital regional.”, afirmou.

Ele criticou o fato de os gestores de saúde serem nomeados por critérios políticos. “Em cinco anos, tivemos seis ministros da Saúde. Cada novo gestor vem com dezenas de cargos de confiança. Isso acontece nos planos federal, estadual e municipal.”

Soma-se a isso, segundo Varella, o fato de o Brasil ainda sofrer de doenças do passado, como arboviroses, malária e sarampo, e a população estar envelhecendo. "Em 2030, o país terá 41,5 milhões de idosos. Isso muda totalmente a epidemiologia. Há 14 milhões de diabéticos, aos 60 anos, metade dos brasileiros são hipertensos.”

Falta também ao país programas de medicina preventiva para a população em geral, afirmou. “A ideia de esperar que a pessoa fique doente para ser tratada tem de mudar. A população é sedentária, as pessoas não andam 30 minutos cinco vezes por semana. A epidemia de obesidade segue na esteira da americana, com 52% da população apresentando sobrepeso.”

Drauzio Varella - 28/9/2018
Drauzio Varella: "O programa Estratégia Saúde da Família deve ser estendido a todos os brasileiros"

Segundo Scheffer, discute-se muito os rumos e a sustentabilidade do sistema, "mas há consenso da relevância e avanços do SUS e sobre como se fez muito com recursos escassos." Ele preferiu “deixar um pouco de lado” as questões sobre o subfinanciamento e dificuldades de gestão e tratar de outros desafios da saúde pública.

Para ele, a saúde precisa ser retomada como prioridade, pois ela não tem, "nos governos e processos eleitorais, relevância proporcional às necessidades da população". A saúde desponta como a área com a qual a população é mais indignada, "mais até do que em relação à corrupção e ao desemprego", afirmou.

"Três quartos da população usam o SUS, indignada. E nos 30 anos de existência do Sistema já houve 22 ministros da Saúde. A perda de capacidade técnica é impressionante. Ministério, secretarias e agências reguladoras são capturadas por indicações políticas, militâncias partidárias e outros setores com interesses particulares."

Em seus programas de governo, os 13 candidatos da atual eleição à Presidência propõem ampliação do SUS, mas ninguém fala de valores, de acordo com Scheffer. "Há candidatos que até dizem que os recursos são suficientes", disse o pesquisador.

Diante dessa situação, e propõe que o sistema se paute por nomeação de lideranças competentes e com senso agudo de interesse público, capazes de mobilizar pessoas, instituições e redes e que se apoiem na competência científica e inteligência sanitária do país.

Ainda para restaurar a relevância da saúde, ele defende que “sejam contratados mais técnicos qualificados e reduzidos os cargos de confiança apadrinhados, e que a saúde seja um tema nucelar das campanhas eleitorais”.

Além do tratamento da saúde com a relevância que ela merece, Scheffer discutiu mais quatro imperativos a serem considerados: equilíbrio, igualdade, aceitação e abrangência.

Quanto ao equilíbrio, ele afirmou que há uma desproporção entre oferta de serviços e demandas de saúde e quem mais precisa utiliza menos. De acordo com ele, dos 9,1% do PIB destinados à saúde, 43% são de gastos públicos e 57% de gastos privados. Dos médicos existentes, 73% atuam no SUS e 78% trabalham para planos de saúde e em atendimento particular. O valor médio da internação nos planos é de R$ 6,5 mil, enquanto no SUS é de R$ 1,3 mi, acrescentou.

Para restaurar o equilíbrio, Scheffer defende que os recursos existentes sejam universalizados, com maior participação dos recursos privados no atendimento aos usuários do SUS. Outras medidas que propõe são a revisão das políticas fiscais e de crédito para os setores privado e filantrópico que não atendem ao SUS e revisão das isenções fiscais para os planos de saúde.

Em relação ao quesito igualdade, Scheffer disse que as pessoas precisam ter chances de tratamento, com o sistema de saúde enfrentando fatores que geram adoecimento da população. Para tanto, é preciso diminuir as desigualdades na exposição aos fatores de risco sanitário e no acesso aos serviços e assistência à saúde, defendeu.

Para isso, ele propõe, entre outras medidas, a coordenação de política de proteção aos riscos; a intersetorialidade com outras políticas, como as de educação, emprego e renda; inclusão dos mais vulneráveis; e abordagem de questões tabu, como aborto, propaganda de álcool e alimentos ultraprocessados.

São vários os fatores que prejudicam a aceitação do sistema pela população, segundo Scheffer, entre os quais a atenção primária pouco resolutiva; a falta de profissionais e medicamentos; as filas para exames e cirurgias eletivas; urgências e prontos-socorros lotados; e rede hospitalar insuficiente e ineficiente.

Para que se atinja um nível melhor de aceitação do sistema, ele defende que seja intensificado o uso da tecnologia para a melhoria no acesso à informação e na transparência para o usuário; melhorar a organização do sistema com a implantação das regiões de Saúde criadas pelos estados e de redes de atendimento hierarquizadas a partir da atenção primária; avaliar os 20 anos de atuação das organizações sociais na gestão de serviços de saúde; investir em recursos humanos qualificados e bem remunerados e nas condições de trabalho.

Sobre a necessidade de maior abrangência do sistema, Scheffer argumentou que o acesso universal é o princípio para a organização dos sistemas de saúde contemporâneos. "O SUS deu certo onde foi abrangente e universal." Entre outros exemplos de sucesso, citou a redução da mortalidade infantil, os medicamentos genéricos, o tratamento dos portadores de HIV, controle do tabagismo, atendimento móvel de urgência, transplantes e programas de imunizações.

Para a ampliação da abrangência, o SUS deve se tornar progressivamente mais abrangente, afirmou, com mais recursos, com setor suplementar regulado e prestador de serviço nas estruturas universais, “mas sem admitir que o setor privado use recursos públicos para estratificar serviços e atender a clientelas diferenciadas”.

Mário Scheffer - 28/9/2018
Mário Scheffer: "`Deve-se rediscutir os benefícios fiscais a pessoas jurídicas e físicas a ao setor filantrópico que não atende ao SUS"

Além disso, ele defende que "se abram portas e se derrubem paredes, sem construir 'puxadinhos', como planos 'acessíveis', clínicas populares etc.".

No debate que se seguiu, o sociólogo Glauco Arbix, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFLCH) da USP e integrante do Observatório da Inovação e Competitividade do IEA, disse não ter visto nas exposições de onde sairão os recursos para a melhoria da saúde. "As ideias de equilíbrio, medidas de gestão e recomposição de gastos públicos e privados, isso daria conta de uma parte. Mas a conta fecha? Até que ponto a ideia de universalidade ajuda ou atrapalha o debate?"

Em resposta, Varella afirmou que é preciso buscar novas fontes de recursos, como a redução de benefícios fiscais. "As motocicletas têm grande peso nas mortes no trânsito e 97% delas são produzidas com isenções fiscais em Manaus. Na Califórnia, as companhias de cigarro foram obrigadas a pagar US$ 200 bilhões em 15 anos para cobrir as despesas de saúde com fumantes. Quem causa mal para a sociedade tem de ser penalizado". Ele também criticou as isenções usufruídas por planos de saúde e seus usuários. "São verbas que poderiam ser canalizadas para o SUS."

Para Scheffer, é preciso ignorar falsas utopias, como dobrar a população atendida ou os gastos do sistema. Assim como Varella, ele defendeu a rediscussão dos benefícios fiscais, como a não tributação pelo imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas das despesas com médicos, exames e remédios e as isenções de que goza o setor médico filantrópico que não atende ao SUS.

Ao comentar as exposições e as carências da saúde no Brasil, o patologista Paulo Saldiva, diretor do IEA e professor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), disse que em 24% dos diagnósticos de câncer os pacientes (“e as pessoas próximas a ele”) não sabiam ter a doença. "Há pessoas que morrem de câncer sem ter diagnóstico". Ele afirmou que a chance de morrer de doença cardiovascular pode ser até 25 vezes maior, dependendo do distrito em que a pessoa mora em São Paulo, o mesmo ocorrendo com a taxa de mortalidade infantil, que pode ser 12 vezes maior.

"Vejo com preocupação essa desigualdade. Mais ainda quando se destinam recursos do SUS para vibrações magnéticas, aromaterapia e cromoterapia.”

Saldiva também defendeu a instituição, "pelo menos em nível municipal", da carreira de médico, com uma política ativa de alocação dos profissionais: "Atualmente, coloca-se na ponta [regiões mais carentes] médicos jovens que não conseguiram entrar num programa de residência. O médico da ponta tem de ser o melhor".

Ele questionou o papel desempenhado pela academia em relação aos problemas com a saúde. "Estamos debatendo os problemas, mas qual nossa coragem de levar a discussão para fora da universidade? Qual a nossa participação além de formar médicos? Nossa elite é preguiçosa, só publicar na 'Science' é o que interessa?"

Varella concordou com a necessidade de controle na formação dos médicos. "Não sei quando avaliar, talvez a cada dois anos do curso." Criticou a proliferação de cursos de medicina ("O Brasil tem mais faculdades do que a China") e a influência do mercado: "Em medicina, não há isso de o profissional ser selecionado pelo mercado. A sociedade deveria ter mecanismos para se proteger de maus profissionais." Para ele, é preciso também considerar alguma forma de retribuição pelo ensino gratuito recebido por médicos em universidades públicas.

O epidemiologista Naomar de Almeida Filho, ex-reitor da UFBA e da UFSB e integrante do projeto A USP diante dos Desafios do Século 21 do IEA, disse que há um problema na educação: "Temos uma formação em saúde que realiza quase uma lavagem cerebral, eliminando a necessidade de se preocupar com os outros. Alguns médicos até se tornam contrários ao SUS."

No que toca aos problemas de gestão, Almeida Filho disse que é um tema que requer atenção, pois "na Constituição, é público o que é exclusivamente estatal, e tudo que não é público é exclusivamente mercado". O marco regulatório e a maneira como o Estado se estrutura impedem a adoção de algumas soluções, afirmou. "O público é impedido de ser lucrativo e, no privado, não há distinção entre o que é puramente lucrativo do que é social. O marco jurídico não tem o terceiro setor. A dificuldade da gestão da saúde é muitas vezes oriunda desse binarismo."

Respondendo a pergunta feita pela audiência online do evento sobre a importância da incorporação de inovações tecnológicas para a melhoria do sistema, Scheffer disse que isso pode ter impacto grande se feito de forma racional, mas se trata de “um pano de fundo” a ser considerado em paralelo às questões demográficas, epidemiológicas e ao crescimento de doenças crônicas.

Quase no final do encontro, a socióloga Amélia Cohn, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, questionou o primeiro ponto da exposição de Varella. Para ela, é perigoso dizer que a Constituição infantiliza o cidadão. "Na atual conjuntura do Brasil, onde é comum a culpabilização do cidadão, não só na saúde, o uso dessa afirmação pode trazer uma cultura punitiva." A complexidade dessa questão deve-se, segundo Amélia, à intersetorialidade que a saúde exige, “do conteúdo social que vem com as políticas e ações técnicas”.

Varella respondeu que não tinha feito essa associação antes, mas que, mesmo assim, considera que “o cidadão tem de ter consciência de que também é responsável por sua saúde, por não caminhar 30 minutos cinco vezes por semana, por exemplo."

Fotos: Leonor Calasans/IEA-USP