Floram

por Marilda Gifalli - publicado 13/06/2013 16:55 - última modificação 20/10/2014 11:07

As origens do Projeto Floram

Jacques Marcovitch

Sempre haverá uma certa curiosidade em saber como foram elaboradas as idéias centrais de umCapa Revista Estudos Avançados v4 n9 projeto de florestamento da amplitude do Floram. Para muitos é difícil entender por que o Instituto de Estudos Avançados foi o berço de um projeto endereçado às ciências ecológicas e biológicas. Seria uma concessão aos modismos do último quartel de século? Ou o resultado de uma longa e arraigada consciência em relação ao futuro do planeta?

Quando o Projeto Floram começa a ser conhecido no Brasil e no Exterior, perguntas são formuladas a respeito de sua autoria e sobre os procedimentos adotados para chegar aos documentos divulgados. Despontam indagações sobre a metodologia adotada, considerando se tratar de uma proposição pioneira, além de ser um empreendimento inédito nas atividades do IEA.

As respostas a tais perguntas e questionamentos baseiam-se nos depoimentos dos que tiveram um papel mais destacado na gestação inicial do Floram. Ou seja, Aziz Ab'Saber, José Goldemberg, Leopold Rodés e Werner Zulauf. Na base desse testemunho é que se apresenta aos leitores esta informação sobre as origens do Projeto Floram.

Pressão internacional

No segundo semestre de 1988, em diversos países e inclusive no Brasil, a opinião pública denunciou com grande veemência os atentados à Natureza cometidos em escala internacional. Por isso, a comunidade científica passou a dar prioridade ao estudo de alternativas a práticas nocivas ao meio ambiente. Entre as várias reuniões científicas convocadas para o debate dessa temática, teve inegável repercussão o congresso " Climate and Development", realizado em Hamburgo, em novembro de 1988, ao qual esteve presente o professor Wilfried Bach, da Universidade de Munster.

Convocada para discutir o " efeito estufa", na reunião houve um confronto entre os pesquisadores comprometidos com a causa ambiental e o "lobby" da energia nuclear. A divergência decorria do fato de os defensores da maior utilização da energia nuclear endossarem as críticas à poluição ambiental, causada pelo desmensurado uso de combustíveis fósseis, propondo o caminho da proliferação de centrais nucleares. Solução rechaçada pelos pesquisadores face ao risco de novas catástrofes como a de Chernobyl.

Tal confronto levou o professor Bach a dirigir-se à delegação brasileira no congresso para formular a seguinte questão, obviamente um desafío: "por que o Brasil, com tamanha extensão territorial e com um clima que permite o crescimento rápido de florestas, não desenvolve um grande projeto de reflorestamento destinado a fixar em fitomassa o excesso de carbono flutuante na atmosfera ?" O questionamento foi registrado pelos delegados brasileiros, entre os quais Werner Zulauf, e chegou ao conhecimento dos que entre nós se dedicam a problemas energéticos e ambientais, graças ao artigo de sua autoria, publicado na Folha de S. Paulo, em dezembro daquele mesmo ano. Assim, pode-se atribuir a esse cientista alemão a proposta de se estudar um audacioso projeto de florestamento e a Zulauf o registro e a disseminação da proposta.

IEA assume o projeto

Tomando conhecimento da tese apresentada no conclave de Hamburgo — e após debatê-la com Werner Zuiauf — o então reitor da USP, professor José Goldemberg, em maio de 1989, solicitou-me que o IEA iniciasse estudos sobre a questão. A importância de o Brasil colaborar no esforço mundial contra o "efeito estufa", a experiência brasileira na constituição de florestas e a disponibilidade de recursos humanos qualificados e grupos de pesquisadores na área foram elementos básicos para a concepção do projeto.

Assim, a questão foi trazida para o IEA, passando a ser examinada por um grupo em que participavam Aziz Ab'Sáber, Werner Zulauf, Leopoldo Rodés e eu. Tendo como objetivo transformar a proposição num projeto do Instituto, o grupo realizou diversas reuniões e o trabalho atravessou várias etapas. O professor Ab'Sáber assumiu a liderança na formulação do conteúdo do projeto e algumas diretrizes foram preparadas sobre o desenvolvimento da temática e da metodologia. Ficou acertado que a confecção do projeto ficaria aberta à participação de todos os engajados na questão florestal — desde os ecologistas que combatem a devastação florestal até os industriais que necessitam das florestas.

A missão estabelecida foi a de preparar para o Brasil um projeto de recuperação da cobertura vegetal, notadamente das florestas. Cumpre assinalar que no primeiro semestre de 1989, na área de assuntos internacionais do IEA — sentia-se a premente necessidade de o Brasil sair da defensiva. O País se encontrava face à opinião pública internacional, sendo constantemente censurado por questões ecológicas. Por isso, parecia evidente que uma contribuição para se passar à ofensiva resultaria de uma atitude responsável, através de um programa expressivo de florestamento.

Na fase seguinte foi constituído no IEA um grupo mais amplo, com a participação de: Antonio Rensi Coelho, Geraldo Forbes, James Wright, Leopoldo Brandão, Luiz Barrichelo, Mauro A. de Morais Victor e Nelson Barbosa. Esse grupo amplo foi então convidado para debater o conteúdo, o formato do Projeto Floram e discutir o documento preliminar.

Confluência de contribuições

A constituição do grupo mais amplo possibilitou a confluência de percepções complementares, indispensável no estudo de um empreendimento interdisciplinar e intersetorial como o Floram. Assim, reuniu-se a visão de Aziz Ab'Sáber (geógrafo com militância ativa no campo da pesquisa e do reconhecimento do território nacional), com a experiência do Leopold Rodés (em que se destaca uma vivência em questões tecnológicas, como pesquisador e industrial), com os conhecimentos do Werner Zulauf (que convive há muitos anos com o questionamento da defesa do meio ambiente). A eles foram somadas as reflexões do professor José Goidemberg (físico, especialista em problemas energéticos com uma visão multidisciplinar das questões enfrentadas pelo Floram).

Para muitos é difícil entender por que o Instituto de Estudos Avançados foi o berço de um projeto endereçado às ciências ecológicas e biológicas.

Em junho de 1989, o projeto Floram estava concebido e esboçado. Naquela ocasião, um dos membros do grupo — Leopoldo Brandão — foi à China, para examinar um projeto de implantação de florestas, empreendimento motivado pela necessidade de aumentar a produção de madeira. Este projeto de 8 milhões de hectares, financiado pelo Banco Mundial, tem por objetivo primordial a expansão da disponibilidade de madeira (que na China é largamente utilizada como combustível na preparação de alimentos e na calefação doméstica). Como especialista em reflorestamento na iniciativa privada, Leopoldo Brandão recolheu experiências dos programas chineses de reflorestamento em larga escala realizados com baixo custo por hectare. As informações trazidas foram de inegável utilidade nas reuniões preparatórias do Floram.

A contribuição de Leopoldo Brandão foi também valiosa porque deu um sentido nacional e global ao projeto. Atuando no setor produtivo, conjuga uma atitude responsável face à viabilização iniciativa com a sensibilidade ante os interesses das gerações futuras. Outras colaborações foram igualmente de muita valia. As opiniões de Luiz Barrichelo (do Departamento de Silvicultura da ESALQ), Mauro Victor, Nelson Barbosa e Antônio Rensi Coelho trouxeram para o grupo uma longa tradição em problemas florestais e, ao mesmo tempo, experiência no sofrimento pára a obtenção de recursos indispensáveis à execução de projetos de florestamento.

Foram inúmeras as reuniões realizadas, com maior ou menor participação dos componentes do grupo ampliado. As intervenções de Geraldo Forbes e de James Wright ajudaram na orientação dos trabalhos na linha de reflexão do IEA. Isto é, para garantir que desde sua origem o projeto fosse marcado pela interdisciplinaridade e a prospectiva. Em resumo, a principal característica do grupo foi a consciência de uma responsabilidade nacional e de longo prazo, mas também de pragmatismo.

As premissas do projeto

Contribuindo, dentro de nossas possibilidades territoriais, para a implantação de grandes massas de vegetação, o Brasil pode colaborar com um programa internacional de sequestro de gás carbônico e assim alcançar vários resultados. Por meio de um projeto bem estruturado, o País se coloca em condições morais de exigir contrapartidas dos países pós-industrializados — principais responsáveis pela liberação e concentração de CO2 na atmosfera. Ao mesmo tempo, poderá obter uma reserva de fitomassa, de grandes proporções, para efeitos produtivos múltiplos de interesse nacional. Funções e salvaguardas foram incluídas para garantir a validade ecológica e social do projeto e torná-lo implementavel em qualquer época. Na opinião do Prof. Aziz, nos próximos dez anos e a partir de qualquer setor preestabelecido, o Floram pode ser iniciado, já que, a despeito de seu caráter amplo — dito erroneamente de "megarreflorestamento"— é um somatório de projetos regionais, relacionado a uma correta tipologia de florestamentos ou reflorestamentos.

Nascido como um projeto de reflorestamento para o ambiente planetário (flor: florestas; am: ambiente; daí Floram), sigla proposta pelo Rodés, o projeto atingiu níveis de florestas sociais; florestas para reabilitação de solos; florestas para bloqueio de desertificação; florestas para reperenização de drenagem; florestas híbridas de interesse sócio-econômico e cultural; florestas e bosques para bloqueio de conturbação; bosques e áreas verdes periurbanas; revegetação e bosqueamentos viáveis para as regiões semi-áridas brasileiras (Floram — Nordeste seco).

Essas premissas reclamam uma atenção com as definições para a compatibilidade operacional face a situações tidas como antagônicas, em decorrência de preconceitos. Assim, deve-se buscar a possibilidade de uma conjugação entre a industrialização de produtos florestais e a preservação do meio ambiente; entre a silvicultura de clones diferenciados e a biodiversidade; entre as atividades de grandes empresas e uma "social-forestry" de pequenos e médios empreendimentos. Essa é a visão estratégica que assegura a viabilidade dos empreendimentos florestais sugeridos pelo Floram.

Debate com 100 personalidades

Ao longo do segundo semestre de 1989 e graças a um esforço intenso do núcleo básico — Aziz, Rodés e Zulauf — as idéias do projeto ganharam corpo e foram revistas pelo grupo mais amplo. Sendo um projeto da sociedade — em 14 de dezembro de 1989 — decidiu-se submeter os textos elaborados à apreciação de 100 personalidades dos principais setores interessados na questão florestal. Pessoas vinculadas à pesquisa, à problemática ecológica e ao setor produtivo — entre eles as empresas nas áreas de transformação e comercialização da madeira e de empreendimentos em reflorestamento. O objetivo era submeter os documentos preliminares à crítica de interessados na questão florestal.

... decidiu-se submeter os textos elaborados à apreciação de 100 personalidades dos principais setores interessados na questão florestal.

A jornada de discussão se realizou no dia 21 de fevereiro de 1990, tendo se baseado nos textos previamente distribuídos (IEA/Documentos Série Ciências Ambientais, I, II e III — Projeto Floram: Primeira Aproximação). No encontro, além de serem recolhidos os comentários dos presentes, foram lidas as opiniões remetidas por carta. Os debates forneceram valiosos subsídios — que foram aproveitados no aprimoramento do projeto. Um juízo positivo sobre as idéias e objetivos do Floram ficou evidenciado.

Duas informações auspiciosas foram transmitidas naquela reunião. Murilio Passos e Aldo Sani — respectivamente da Cia. Vale do Rio Doce e da Riocell — revelaram que iniciativas convergentes, no sentido preconizado pelo Floram, já estavam em andamento nas regiões em que atuam essas empresas. A CVRD vem executando um projeto de reflorestamento numa área de um milhão de hectares e a Riocell, através do florestamento, vem atuando no sentido de atenuar o processo de desertificação no Rio Grande do Sul. Informações alentadoras porque favorecem a idéia de que o Floram, além de um plano, é um incentivo a esforços descentralizados de preservação do meio ambiente, através da ampliação da cobertura vegetal.

Características do Floram

Desde as primeiras discussões em torno do projeto, ficou assentado que a mesma motivação e as características que presidiam a elaboração do Floram deveriam nortear sua execução. O que define essa motivação e essas características ?

Em primeiro lugar, é a evidência de sua necessidade, ao oferecer à sociedade brasileira uma alternativa para enfrentar a questão ambiental com uma solução viável e útil, não só à geração do presente, mas também às gerações futuras. Em segundo lugar, que essa missão seja desincumbida de forma interinstitucional e interdisciplinar. Quer dizer, evitando a criação de novas instituições, mas compondo novas redes de talentos existentes, mantendo-os nas suas instituições de origem. Interdisciplinarmente, porque se entende que a complexidade do Floram tem que ser enfrentada com a confluência de conhecimentos, como ocorreu dentro do grupo que o elaborou. Em terceiro lugar, com o compromisso da Universidade desempenhar um papel de território de encontro, onde os atores da sociedade possam convergir e livremente gerar proposições de interesse da sociedade como um todo. Desta forma, estará se refletindo o interesse da sociedade brasileira em sua globalidade, de forma a que — dos mais "verdes" aos mais utilitaristas — tenham espaço para o encontro de soluções negociadas em função de um plano a ser apreciado e eventualmente adotado.

A próxima etapa

A terceira fase do projeto Floram está apenas iniciando. De um lado, há que se completar estudos de detalhamento. Paralelamente, é preciso levar o projeto para os maiores interessados na sua implantação. Elaborados os documentos introdutórios, o projeto é transferido para a alçada dos organismos e instituições especializadas existentes, das diversas regiões do Brasil. A execução do projeto depende agora da sua particularização para as regiões brasileiras, de uma estrutura em redes que favoreça uma ampla concertação entre os atores envolvidos, e da viabilização de recursos financeiros.

A particularização para as regiões brasileiras deve permitir a análise das áreas de cada região e determinar a forma peculiar de florestamento pertinente a cada área. No âmbito da USP, a ESALQ, através de seu Departamento de Ciências Florestais e do IPEF, tem uma importante contribuição a dar na ampliação do diálogo e da cooperação para a completa descentralização das etapas subseqüentes do projeto.

A estrutura organizacional em rede combina a reunião dos talentos existentes em torno de uma estratégia concertada. A estrutura em rede evita a expansão parasitaria das atividades-meio, valorizando as instituições existentes e priorizando as metas de um programa mobilizador como o Floram.

A viabilização dos recursos financeiros depende de um conjunto de fatores que se estendem do preço da terra ao custeio da floresta. Informações alentadoras, a nivel internacional, revelam oportunidades de conversão da divida junto a países credores e financiamentos junto a bancos multilaterais, orientadas à construção de uma aliança verde. São oportunidades ainda em fase de concretização, que em conjugação com recursos do setor produtivo e dos estados podem viabilizar o programa.

O Instituto de Estudos Avançados entrega à sociedade brasileira um projeto que pode contribuir para uma solução positiva de um problema mundial — a contaminação da biosfera pelo excesso de gás carbônico. Cabe agora à sociedade discuti-lo, emendar e particularizar o projeto, para otimizar seus múltiplos propósitos de interesse para as regiões brasileiras, para o País, para as nações vizinhas e para a sociedade humana.

Bibliografia

AB'SÁBER, Aziz. Zoneamento Ecológico e Econômico da Amazônia: questões de escala e método. São Paulo, Revista IEA,Vol 3, n° 5, jan./abril/1989, p. 4-20.

BRASIL FLORESTAL: Ano 2000. Diretrizes Estratégicas para o Setor Florestal Brasileiro, São Paulo, Grupo de Planejamento Estratégico Florestal, 77 p., dezembro/1981.

BROWN, Lester R. et alii State of the Warld,New York, W.W. Norton & Co., 1989,256 P-

FULLER, Kathryn S. Debt-for-Nature Swaps: a new conservation tool. EUA, in World Wildlife Fund Letter, World Wildlife Fund, 1988.

GUOJIAN, Han. Grandiosa Obra Ecológica. Peking, China, Semanário Beijing Informa, n° 26, p. 16-26, junio 26/1990.

LARREA, Roque Sevilla & QUESADA, Alvaro Umaña. Por Qué Canjear Deuda por Naturaleza ? Quito, Ecuador, Fundacion Natura, 30 p.

McNEELY, Jeffrey A. Economics and Biological Diversity: Developing and Using Economic Incentives to Conserve Biological Resources. Gland, Switzerland,. IUCN - International Union for Conservation of Nature and Natural Resources, 236 p., November, 1988.

MARCOVITCH, Jacques & RODÉS, Leopold. Grupo de Debates sobre Planejamento Estratégico para o Setor de Celulose e Papel: a experiência brasileira. Washington, EUA, Revista Ciência Interamericana da OEA, Vol. 22, n° 3-4, p. 24-28, julio/1982.

MINTZER, Irving. Economics of Environmental Protection. EUA, in Journal of Policy Analysis and Management, 1988.

POSTEL, Sandra & HEISE, Lori. Reforesting the Earth. in Brown, Lester R. et alii State of the World, New York, W.W. Norton & Co., 1988, 256 p.

REPETTO, Robert. Promoting Environmentally Sound Economie Progress: what the North can do,New York, WRI - World Resources Institute, 21 p., 1990.

SEDJO, Rodger A. Forests: a tool to moderate global warming ?. Washington, Environment, Vol. 31 (l),p. 15-20, january/february/1989.

THE WORLD BANK. Funding for the Global Environment .Discussion Paper, February, 1990.

ZULAUF, Werner Eugênio. A Reversão Florestal. Jornal Folha de S. Paulo, C.2 -Cidades, 7 de dezembro de 1988.

Relacionado

ARTIGOS

 

Leia mais...

Revista Estudos Avançados , vol. 10, n. 27 - 1996

Leia artigo do Informativo IEA, n. 17, págs 4 e 5, fevereiro de 1991.

 

VÍDEO

Apresentação do projeto Floram feita por seus idealizadores em 30 de junho de 1990.