Cotidiano interdisciplinar e lúdico

por Nelson Niero Neto - publicado 07/02/2020 12:51 - última modificação 07/02/2020 12:51

Para se valorizar a escuta, os saberes e a necessidade de brincar das crianças é preciso investir em formação docente e troca de experiências dentro da escola

Pontos-chave

1. Os desafios da Educação Infantil ainda dizem respeito a visões equivocadas que parte da sociedade tem sobre a etapa. É preciso esclarecer os pais e a comunidade sobre suas especificidades para evitar pressões como a antecipação da escolaridade.

2. A formação inicial fragmentada do professor é o contrário da natureza interdisciplinar do cotidiano da Educação Infantil e não se mostra suficiente para apoiar a prática docente, que se constrói e aperfeiçoa dentro da escola. Gestores devem incentivar o compartilhamento de experiências entre os profissionais, para que se efetive a aprendizagem por projetos.

3. As creches e pré-escolas se beneficiam da parceria com a família, a comunidade e espaços e equipamentos culturais em seu território, permitindo a interação das crianças com pessoas, lugares e objetos de conhecimento para além dos muros da escola.

Por Rodrigo Ratier e equipe

O que é interdisciplinar e o que é transversal na Educação Infantil? Ao abrir o grupo de discussão em torno dessa questão, o professor Lino de Macedo fez referência à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em especial aos Campos de Experiências e aos Direitos de Aprendizagem e Desenvolvimento trazidos por ela. “Se observarmos os campos, veremos que todos eles estão interrelacionados”, afirmou.

O especialista, que coordenou a atividade temática "Vivências dos conteúdos na Educação Infantil", defendeu que os campos apresentam a ideia de interdisciplinaridade, enquanto os Direitos se relacionam com a  transversalidade. “A palavra direito implica em deveres, mas as crianças pequenas não têm deveres e sim necessidades de desenvolvimento”, explicou. Sem o apoio de família, escola e sociedade, elas ficam comprometidas e já começam suas vidas em desvantagem.

Na Educação Infantil o brincar e as interações – entre pares, com adultos e em diferentes situações – são os eixos estruturantes do trabalho e caracterizam a infância. “As crianças têm necessidade e direito de participar de atividades, de explorar ludicamente o próprio corpo e de construir sua identidade”, disse Lino. Ainda que essa etapa tenha vocação transdisciplinar, ele aponta que há riscos de fragmentação na proposta da BNCC e que se dão por alguns fatores, como a divisão em três etapas, de acordo com a faixa etária dos pequenos e a falta de integração entre os anos iniciais do Ensino Fundamental – tradicionalmente mais fragmentados em disciplinas e em um formato de escolar mais tradicional – e o que se espera da Educação Infantil.

Para a formadora de professores e pesquisadora Waldete Tristão, que dividiu a coordenação da atividade com Macedo, o maior risco que a Educação Infantil corre é justamente ser considerada um preparatório para a etapa seguinte. Segundo ela, é preciso focar no momento vivido pelos pequenos. “A criança tem direito de ser sujeito no seu próprio tempo e esse tempo é para ser vivido intensamente na Educação Infantil”, ressaltou.

Veja os vídeos do encontro na íntegra: Parte 1Parte 2

As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) asseguram que essa é a primeira da Educação Básica e sinalizam que ela exige uma especificidade do profissional. Ele ou ela devem entender os eixos norteadores do desenvolvimento infantil, a forma como o currículo pode ser construído, sobre linguagem oral e escrita, sobre acolhimento e autonomia das crianças. “O autoconhecimento perpassa todas as experiências da criança na creche e na pré-escola”, observou Waldete. A construção da autoimagem depende de valores importantes para a família e da instituição educacional. O profissional da Educação Infantil deve colocar a equidade como conceito transversal, observando a diversidade entre as crianças como realidade.

Desafios da educação infantil
Divididos em grupos de oito pessoas, os participantes discutiram levando em consideração as perguntas norteadoras: O que é transversal e o que é interdisciplinar na Educação Infantil? Como praticar a aprendizagem por problemas, por competências e por projetos? Como integrar Ciências da Natureza, Humanas e Cultura, Linguagem, Matemática e Tecnologias? Na hora de socializar as discussões, uma pessoa foi escolhida para apresentar os comentários de cada grupo. Os principais pontos levantados foram:
  • A Educação Infantil frequentemente é vista como uma etapa de preparação para o Ensino Fundamental. Em outros momentos enfrenta uma visão assistencialista, voltada apenas para cuidados básicos
  • A formação inicial do professor acontece dentro de uma lógica fragmentada, que precisa ser desconstruída no cotidiano. A escola deve ser o locus de formação permanente e estimular a reflexão sobre a prática.
  • O trabalho com projetos dá sentido aos conhecimentos, supera a fragmentação das disciplinas e dá margem ao protagonismo quando é feito COM as crianças e não PARA elas (sem escutá-las ou reconhecer seus saberes).
  • O tripé cuidar, brincar e educar sustenta a Educação Infantil. E a aprendizagem é mais efetiva quando os projetos surgem do interesse da turma e os conhecimentos são construídos de maneira conjunta.
  • É preciso garantir a equidade e ter um olhar atento para questões de gênero e étnico-raciais.
  • A relação com a família é delicada, pois muitos pais cobram caderno ou criança alfabetizada e cabe aos profissionais mostrar que meninos e meninas aprendem por meio da brincadeira.
  • Aproximações com o território onde estão inseridas as escolas, como visitas a museus, teatros, bibliotecas, centros culturais, parques e praças, estimulam a curiosidade e as aprendizagens das crianças.

 

Na parte da tarde, os participantes foram divididos em três grandes grupos, cada um com a missão de discutir uma temática: 1) a demanda de antecipação de escolarização na Educação Infantil; 2) as relações da escola com família, comunidade e território; 3) a formação de professores. Leia a seguir seus relatos resumidos.

Concepções claras de criança e de infância

O grupo representado por Marieta Leite Silva, coordenadora pedagógica em Itapeva, SP, reuniu profissionais do litoral, do interior e da grande São Paulo, e elencou situações para evitar a antecipação da escolarização. Eles destacaram que os princípios da Educação Infantil e suas especificidades devem ser entendidos pelos pais e por docentes do ensino fundamental. A formação continuada de professores precisa fortalecer a concepção de criança e infância e aos gestores escolares cabe definir uma proposta pedagógica clara e dialogada com a escola e a comunidade. “Para que não se antecipe a escolarização, o principal é saber o que é para ser feito. Ou seja, a escrita deveria ser reconhecida enquanto linguagem como todas as outras: a oralidade, a música, a dança, as artes visuais, a modelagem”, observou Marieta, que defendeu o contato com a escrita em sua função social. Outra questão comentada pelo grupo foi a da avaliação na Educação Infantil, encarada como problema em vários municípios, e que deve ser auto avaliativa e considerar o desenvolvimento das crianças por meio de observação e registro.

Parcerias pela valorização do território e da comunidade

Denise Lovison, diretora de escola municipal em Taquarituba, SP, relatou um projeto para aproximar a comunidade e envolver os pais na unidade escolar, que atende do berçário ao 5º ano. “O tema escolhido foi alimentação saudável e o interesse das crianças se iniciou com uma receita de pizza”, contou ela. Depois de conhecer alternativas saudáveis de preparo, as temáticas se ampliaram para meio ambiente, material reciclável, separação de lixo e sustentabilidade. As crianças foram a campo visitar uma horta orgânica, depois montaram uma similar na escola. “Um projeto desse tipo começa pequeno, com uma ideia, mas o que faz diferença é a parceria do coordenador pedagógico e do diretor, dando segurança para o professor”, destacou. O docente precisa ser incentivado a trazer ideias e assumir o papel de autor e protagonista na escola.
Professor é sujeito e não objeto de uma formação

Quem é Waldete Tristão
Doutora em Educação pela USP e mestre em Educação pela PUC-SP, é graduada em Letras e Pedagogia. Atuou como professora, formadora e na gestão pedagógica e administrativa em Escolas de Educação Infantil (EMEI) e Centros de Educação Infantil (CEI) do Município de São Paulo por 32 anos. É membro da Equipe de Educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), formadora de gestores e professores de Educação Infantil, com enfoque em relações raciais.
Quem é Lino de Macedo
Mestre, doutor e livre-docente em Psicologia pela USP. É membro da Academia Paulista de Psicologia e docente aposentado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Especializou-se no construtivismo do suíço Jean Piaget (1896-1980), na Psicologia aplicada à educação e nos jogos infantis e hoje coordena um laboratório de pesquisas e elaboração de atividades relacionadas às brincadeiras e voltadas para a escola.
Vanessa Barbato Rodrigues, diretora de uma EMEI em São Paulo, contou que seu grupo considera a formação inicial fragmentada e conteudista e que só o desenvolvimento profissional do professor e dos gestores dentro da escola permite que revisem sua atuação. “A formação, seja inicial ou permanente, precisa considerar inquietações e conhecimentos e colocar os docentes como sujeitos do processo formativo e não como objetos de aula”, ressaltou Vanessa. Ao trazer sua experiência, o docente se torna protagonista e precisa lançar mão de registros (antes, durante e depois das atividades em sala) para poder refletir sobre suas ações. O PPP deve ser construído de forma coletiva, pois precisa representar a voz de todos e também orienta as formações. Vanessa também falou da necessidade de reservar momentos de troca de experiências na equipe escolar. “Assim é possível refletir sobre a minha ação a partir do relato da ação do outro”, explicou a diretora. Segundo ela, a escola é uma ‘comunidade aprendente’, em que os projetos precisam ser compartilhados e o conhecimento é construído por todos – docentes e não docentes.