Grandes questões sobre linguagem

por Nelson Niero Neto - publicado 07/02/2020 12:23 - última modificação 07/02/2020 12:23

Matemática e língua materna, duas formas de representação da realidade, podem ser trabalhadas de maneira articulada, sobretudo quando a tecnologia é discutida
Pontos-chave

1. O trabalho transdisciplinar exige um olhar para objetos de conhecimento grandes e que não cabem em uma única disciplina.

2. Os centros de interesse dos estudantes podem ser um ponto de partida para definir quais são os objetos de conhecimento que podem ser abordados de maneira interdisciplinar.

3. A Matemática e a Língua Portuguesa se aproximam por serem os dois grandes sistemas de representação da realidade e, nesse sentido, abrem-se caminhos para muitos projetos que integrem essas duas áreas.

4. A maneira como essas áreas lidam com erros e também como elas são utilizadas para a construção de narrativas são dois caminhos possíveis de aproximação entre elas.

5. A tecnologia pode ser um elemento integrador entre linguagem matemática e a língua materna, promovendo aproximação entre tais sistemas de representação da realidade.

Por Rodrigo Ratier e equipe

"A matéria da escola é a vida": foi assim que o professor Nílson José Machado deu início à atividade temática "Linguagem, Matemática e Tecnologias". Machado, que coordenou a atividade junto a Eliane Reame e Walter Spinelli, retomou a ideia de transdisciplinaridade discutida na sessão de abertura do segundo encontro do Ciclo Escola: Espaços e Tempos das Ações Docentes da Cátedra de Educação Básica da USP.

Machado defendeu que se pode observar a fragmentação do conhecimento em dois eixos. Um deles, que chamou de manso, é o que vai da noção de multidisciplinaridade – a existência natural de muitas disciplinas – até a de interdisciplinaridade – relacionada à interação entre as disciplinas, cada uma mantendo seus objetos de estudo próprios.

Já o eixo chamado de bravo, por ser aquele onde há maior polêmica, vai da intradisciplinaridade – uma especialização cada vez maior dentro de cada disciplina – para a transdisciplinaridade – em que se concebem disciplinas com objetos cada vez maiores. "A intradisciplinaridade está associada a uma descaracterização da ideia de especialização, na medida em que o especialista se torna aquele que sabe cada vez mais sobre cada vez menos", explicou. Mantendo o paralelo, ele relaciona a ideia de transdisciplinaridade com a de um consultor. "É o especialista em um ponto específico, mas que não deixa de olhar para o funcionamento do todo", completou.

Os coordenadores da atividade também afirmaram que os centros de interesse podem ser bons pontos de partida para os trabalhos transdisciplinares nas escolas. Um exemplo é o conceito de algoritmo: na Matemática, sobretudo nos anos iniciais, ele se refere a um conjunto de procedimentos para se resolver um cálculo, mas tem se tornado cada vez mais comum com a ascensão das redes sociais, que usam algoritmos complexos para definir quais publicações serão mostradas aos usuários. São eles que influenciam, por exemplo, a propagação de notícias falsas. Outro exemplo são os emojis, símbolos utilizados em mensagens de texto e WhatsApp. “Hoje, eles já se constituem como uma espécie de linguagem ideográfica própria”, pontuou Machado.

Temas para discussão

Depois da apresentação inicial, os participantes foram divididos em grupos que pensaram propostas de trabalho. Os participantes foram convidados a se juntar em grupos diversificados. "A ideia é não nos fecharmos só no nosso segmento ou na área com a qual trabalhamos, mas fazer um exercício de olhar para temas maiores e, depois, quando voltarmos às escolas, pensarmos em como adequá-los a uma etapa ou série específica", sugeriu Eliane Reame.

Veja os vídeos do encontro na íntegra: Parte 1Parte 2

Uma dificuldade ao pensar em projetos transdisciplinares é o fato de os professores lidarem com a falta de conhecimentos nas disciplinas diferentes daquela em que são especialistas. "A proposta não é que cada professor saiba tudo sobre um tema, mas que possamos pensar nas informações que poderemos buscar dentro do nosso coletivo e também externamente", propôs Walter Spinelli. Após uma discussão inicial em torno de sete temas, os grupos reduziram as propostas a quatro tópicos principais:

1) Espaço: uma proposta de projeto transdisciplinar que discutisse diferentes noções de espaço, na Matemática (como a localização espacial nos anos iniciais do Fundamental e, na Geometria, a discussão sobre o espaço tridimensional), na Geografia (no próprio conceito de espaço geográfico e das representações do espaço) e nas Ciências (na reflexão sobre ecossistemas e também o espaço sideral). A tecnologia e a linguagem entrariam de forma transversal, possibilitando a integração de saberes.

2) Análise do erro: os participantes propuseram um trabalho que discutisse a ideia do erro, nas diferentes disciplinas e nas diferentes etapas. A ideia seria usá-lo como base para pensar as diferentes consequências de erros ortográficos, de compreensão de texto e também na Matemática.

3) Saúde e alimentação saudável: o terceiro grupo formulou a proposta de um projeto transdisciplinar que tratasse de saúde e encontrasse apoio na Matemática e nas Linguagens para discussão de temas que também abordariam as Ciências da Natureza e as Ciências Humanas.

4) Contação de Histórias: o quarto grupo pensou na possibilidade de estabelecer relações entre as narrativas que podem ser feitas com a linguagem matemática – por meio de expressões numéricas, por exemplo – e as histórias em formatos de contos ou faz-de-conta.

Dessas, os temas "Análise do Erro" e "Contação de Histórias" foram eleitos para serem aprofundados e apresentados no fim do dia. Leia, abaixo, uma síntese das discussões apresentadas sobre cada um deles.

Quem é Nílson José Machado
Leciona na Universidade de São Paulo desde 1972. Começou trabalhando no Instituto de Matemática e Estatística, e, em 1984, passou a integrar o corpo docente da Faculdade de Educação, onde é professor titular. Além de matemático, é mestre e doutor em filosofia da educação e livre-docente na área de epistemologia e didática. Escreveu cerca de duas dezenas de livros para crianças e publica microensaios semanais em seu site pessoal: www.nilsonjosemachado.net

O erro como norteador da aprendizagem

Daniel Alarcón, da rede municipal de Alumínio, no interior de São Paulo, contou que a ideia de trabalhar com o erro surgiu de um trabalho que ele e alguns colegas haviam vivido em suas escolas. Eles propuseram que os alunos de 3º ano do Ensino Fundamental pudessem, com base na análise de resoluções erradas, argumentar sobre o pensamento matemático envolvido nelas. "Queríamos desconstruir a ideia de que toda situação problema é uma historinha e alguns cálculos", disse.

Ao expandir a ideia, os professores formularam também a hipótese de que o erro fosse discutido como algo natural e que é parte de todo o processo de aprendizagem. Na língua, por exemplo, podem haver erros gramaticais ou erros de compreensão de um texto que prejudicam o entendimento da mensagem que se quer passar. Ao mesmo tempo, a depender da situação comunicativa, é possível que pequenos deslizes da norma culta sejam tolerados sem grandes problemas.

Machado, ao concluir a discussão sobre esse tema, pontuou também a importância que os erros têm na tecnologia. "Ele pode ser fatal", aponta. Segundo o especialista, muitos sistemas não admitem nuances e mesmo pequenos deslizes não são tolerados. "Se você vai pagar uma conta e erra um único dígito, já era. A língua e a matemática são muito mais tolerantes para o erro do que a tecnologia", analisou.

Histórias em muitas áreas

As narrativas foram o grande tema elencado pelo segundo grande grupo. De acordo com os participantes, tanto a Língua Portuguesa quanto a Matemática têm um grande potencial de contar histórias. "Um conteúdo possível é a lógica, abordada tradicionalmente na Matemática, mas que também pode ser aplicada na construção das narrativas e da argumentação", sugeriu a professora Ana Lúcia Martorelli, da rede privada de São Paulo.

Quem é Eliane Reame
Licenciada em Matemática pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pedagoga pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre e doutora pela Faculdade de Educação da USP (FEUSP). Trabalha como assessora educacional em escolas e fundações e é autora de livros didáticos de Matemática.
Quem é Walter Spinelli
Possui doutorado em Educação de Ciências e Matemática pela USP. Tem experiência na área de Educação de modo geral e, em particular, nas disciplina de Matemática de ensinos Fundamental e Médio, e de Física do Ensino Médio.
Os participantes também discutiram a importância da tecnologia na realização do trabalho, propiciando que as próprias narrativas fossem construídas com o apoio de computadores e da internet. Além disso, a mediação tecnológica poderia possibilitar que os alunos desenvolvessem o trabalho de forma mais personalizada, usando o apoio do computador para sistematizar suas aprendizagens e garantir que todos os alunos fossem incluídos no trabalho.

Machado também destacou a importância de se observar o uso dos dados matemáticos para a construção das narrativas que se dizem basear neles. "Dizem que os números não mentem, mas eles são excelentes para tornar mentiras convincentes", resumiu.