Competência para desenvolver competências

por Nelson Niero Neto - publicado 01/08/2019 18:05 - última modificação 20/08/2019 14:57

A ideia proposta na BNCC exige um novo tipo de professor, aberto a aprender constantemente e a levar seus alunos a novas descobertas
Pontos-chave
1. Exige-se do professor que ele desenvolva nos alunos uma série de competências que são importantes nos dias de hoje. Mas o caminho para alcançar essa meta não está na BNCC.
2. O construtivismo aponta para modelos em que tanto alunos quanto professores crescem e se desenvolvem. O professor deve ser um mediador e estar sempre em busca de novos aprendizados.
3. A busca pelo desempenho deve ser feita com bom senso para evitar que o excesso de exigências cause danos sérios à nossa saúde.

Por Rodrigo Ratier e equipe

Em seu extenso texto, a BNCC destaca a necessidade de a escola desenvolver, nos alunos da educação básica, uma série de competências para a vida no mundo de hoje. Como o professor, por meio do  seu magistério, pode abraçar essa tarefa?

A reflexão guiou a apresentação “O professor e suas competências”, de Lino de Macedo, docente emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, no primeiro ciclo de palestras da Cátedra de Educação Básica da USP. Para Lino, a BNCC – que independentemente das críticas que possa receber, está posta como uma referência nacional – estabelece as metas, mas não apresenta as ferramentas para atingi-las. “O desafio que se desenha, então, é o seguinte: como o professor pode se inspirar e melhorar o seu trabalho visando o que a BNCC pede: o desenvolvimento de competências?”.

Para examinar a questão, Lino propõe que se pense, antes de mais nada, na ideia de competência e nas suas implicações no trabalho do professor.

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O que é competência?

Na BNCC, competência está definida como a "mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), e de valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho". Essa definição, segundo Lino, tem estreita correspondência com o que propõem Zabala e Arnau no livro Como Aprender e Ensinar Competências.

Os autores se baseiam na tríade aspecto cognitivo (conhecimento), procedimentos (saber fazer com o domínio técnico) e desenvolvimento socioemocional (socioafetividades, atitudes, valores) para propor uma série de perguntas que, encadeadas, podem ajudar o professor na reflexão sobre os seus desafios diários. São elas: o que é competência? Para quê? De que forma? Onde? Por meio de quê? Como?

Nesse registro, a resposta dos autores – perceba o diálogo com a BNCC – é: competência é a capacidade para realizar tarefas ou atuar frente a situações diversas de forma eficaz, em determinado contexto, por meio da mobilização de atitudes, habilidades e conhecimentos.

Lino faz uma observação sobre o verbo mobilizar, que significa “pôr em movimento”, algo essencial na relação professor-aluno. “Não posso respirar pelo outro, aprender pelo outro, ser pelo outro, mas eu posso, com competência, mobilizá-lo para coisas que tem valia para ele, para a sua vida, para que ele possa ser o melhor de si mesmo, em favor dele, dos outros, do mundo”, diz.

E completa: “Muitas vezes não sabemos fazer isso, ou não temos os recursos para mobilizar o aluno para coisas que tenham valor de aprendizagem, de desenvolvimento para ele. Claro que há uma mobilização que vem de dentro para fora. Mas também existe uma mobilização que vem de fora para dentro.”  A questão que surge, então, é: como se mobiliza um aluno para que ele possa, no contexto da aula, aprender?

Desafios para o professor – e para a escola

Para Lino, são quatro os principais desafios do professor, sempre considerando o que propõe a BNCC no recorte específico de se desenvolver competências nos alunos.

Pergunta da plateia

Há alternativas concretas para promover uma educação mais voltada a pensar em vez de privilegiar conteúdo para o vestibular?

“Competência e conteúdo não são inimigos”, explica Lino de Macedo. “Pode-se desenvolver competências nos alunos e em si mesmo por meio de conteúdos disciplinares”. O trabalho com jogos matemáticos, por exemplo, trabalha habilidades de raciocínio, lógica e argumentação. Lino reconhece que é um desafio, mas que já há farta bibliografia com possibilidades para o educador. “Mais que possível, essa ação é necessária, senão estamos de novo fazendo a fragmentação do ensino e perdendo uma oportunidade de coordenar perspectivas que não são antagônicas.” A professora Bernardete Gatti destaca que o trabalho com competências está presente também na própria postura cotidiana do professor e da professora. “Se você dá atenção ao aluno, se responde às questões, se está presente, se respeita as perspectivas dos estudantes, você está passando valores por meio de suas atitudes. A vivência dessas situações é formativa para a turma, que tem exemplos de desenvolvimento de compreensão do outro, de estabelecimento de limites etc”. Bernardete afirma, ainda, que não é preciso uma aula específica para trabalhar competências socioemocionais. “A cognição e a emoção andam juntas”, defende. Lino de Macedo concorda: “São componentes articulados e articuláveis. Essa é a ideia do desenvolvimento integral.”

O primeiro deles é aplicar, criticamente, na prática escolar, a ideia de competências proposta pela BNCC. O segundo é atualizar currículo, projeto político-pedagógico e recursos didáticos em função do que propõe a nova base. O terceiro diz respeito à formação do professor: como se formar, o que procurar, como se aperfeiçoar como um profissional que aceitou o desafio de desenvolver competências nos alunos? Por fim, o quarto é repensar o patrimônio pedagógico do professor: ele precisa ser reconhecido e valorizado, mas, ao mesmo tempo, transformado, integrado em uma realidade que muda a todo tempo.

Professores que abraçam os quatro desafios constroem, assim, uma escola de competências. Lino provoca: como seria, concretamente, uma escola assim? Para ele, uma escola de competências trabalha o quaterno desenvolver-se, avaliar, ensinar e aprender como partes de um mesmo todo.

Tradicionalmente, esses termos foram separados – o aluno se desenvolve e aprende, o professor ensina e avalia –, mas eles precisam ser reintegrados. No exemplo do professor: “Hoje sabemos que o docente precisa se desenvolver e se formar, precisa se autoavaliar e também precisa ser avaliado, seja pelos colegas, seja pelo sistema”, diz Lino. “Como se pensa a avaliação na perspectiva do professor? Como o professor se dá o direito de aprender com os alunos?” Dentro dessa lógica, magistério e formação devem ser complementares e indissociáveis.

Já na perspectiva da criança, a reflexão de Lino enfocou o pólo da aprendizagem. Segundo ele, o direito de aprendizagem implica em necessidades de desenvolvimento, e não em algum tipo de dever ou responsabilidade, como normalmente ocorre quando se fala em direitos na perspectiva de um adulto. A criança tem direito de aprendizagem porque ela tem necessidade de desenvolvimento – ela não nasce sabendo. “Como se pensa direito na perspectiva de necessidade – ou seja, aquilo que, se não acontecer, gera contradição?”, indaga. Segundo ele, o desenvolvimento integral do sujeito, que aprende ou que ensina, combina com desenvolvimento da autonomia (discente e docente).

Quatro modelos para a educação construtivista

O compromisso do professor que aceita o desafio proposto pela BNCC é imenso. Lino usa sua formação construtivista para propor modelos possíveis para a atuação do professor nos dias de hoje. Lembrando Piaget e como o termo competência aparece em sua obra, Lino destaca: “Para Piaget, competência é a sensibilidade de resposta aos estímulos. Uma definição de uma complexidade e de uma simplicidade maravilhosas. Quer dizer que a criança demonstra competência quando tem sensibilidade suficiente para responder aos estímulos do mundo. Entre os estímulos do mundo e as respostas do sujeito, temos o que Piaget chama de assimilação.”

Inspirado em Gruber e Vonèche, Lino descreve as quatro propostas para uma educação construtivista: Taos, Paris, Atenas e Eldorado.

  • Taos é a metáfora para aqueles que sabem propor tarefas, projetos, conseguem mobilizar os alunos para que eles sejam sujeitos ativos do seu conhecimento.
  • Paris é o prazer da discussão – seria um professor que sabe formar uma roda em que os alunos possam pensar e discutir.
  • Atenas é o modelo do professor que sabe fazer perguntas, criar um contexto que favoreça o desenvolvimento.
  • E, por último, o modelo do Eldorado, em que o adulto participa nos processos de descoberta e aprendizado. Uma metáfora para dizer que não são só os alunos que aprendem. O professor também aprende. “Há um lugar cheio de ouro que o professor também está buscando”, diz Lino.

 

Quem é Lino de Macedo

Mestre, doutor e livre docente em psicologia. É membro da Academia Paulista de Psicologia e Professor Emérito do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. É também assessor do Instituto Pensi, Fundação José Luiz Egydio Setubal e integra a Cátedra de Educação Básica do Instituto de Estudos Avançados, USP. Especializou-se no construtivismo de Jean Piaget (1896-1980) e na psicologia aplicada à educação e à saúde infantil, recorrendo aos jogos e brincadeiras para observar e promover processos de aprendizagem e desenvolvimento.

No entanto, é preciso estar atento para não cair nas armadilhas do desempenho competente. Lino lembra que a obsessão por desempenhar bem, por ser um profissional excelente, está colocando a nossa saúde em risco. “Se tomamos a ideia de competência acriticamente, nos fazemos exigências que, em vez de nos trazer autocuidado, autonomia, autorrespeito, nos enlouquecem”, diz. Citando Han, aponta que depressão, burnout, cardiopatia, baixa autoestima, obesidade, suicídio, desgosto pela vida seriam expressões de um mundo em que as exigências externas se tornaram internas. “Antes, eu tinha um chefe fora de mim que me cutucava, me cobrava metas o tempo todo. Agora, esse chefe está dentro de mim. Se não tomarmos cuidados, pegamos o modelo da máquina, de trabalhar 24 horas por dia 7 dias na semana. Em nome de uma boa ideia, sentimos que temos que ser o melhor de nós incondicionalmente. Infelizmente nós temos sido mal gestores de nós mesmos”, conclui.